Nesta terça-feira, completam-se 50 anos de um capítulo simbólico da história da luta por democracia no Brasil. Em 26 de junho de 1968, quando o país amargava o quarto ano de uma ditadura civil-militar que duraria duas décadas, as ruas do Rio de Janeiro foram tomadas pela demonstração política massiva que viria a ser conhecida como “passeata dos 100 mil”.
Quem ajuda o Brasil de Fato a contar esta história -- e não só na condição de testemunha ocular, mas de sujeitos ativos nesse episódio -- são lideranças consideradas referência histórica para a juventude de esquerda de hoje, mas que, na época, eram militantes anônimos na mulitdão.
O jornalista Franklin Martins, então estudante universitário, relata que, quando o protesto foi anunciado pelos estudantes, a expectativa era de um desfecho violento. Mas a força do movimento teceu um outro destino para a passeata.
“A ditadura disse que não permitiria de jeito nenhum, que iria dissolver [o protesto], e ali eles estavam começando a dissolver as manifestações à bala, então, ia ser uma carnificina. Mas o movimento estudantil manteve, e eles foram obrigados a recuar. A ditadura sofreu uma derrota muito grande. Foi uma coisa muito forte”, resgata Martins.
Clique abaixo e ouça trecho de discurso do líder estudantil Vladimir Palmeira em que ele avisa que havia promessa de violência contra os manifestantes:
Segundo a historiadora Maria Aparecida Aquino, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), o nome sob o qual ficou conhecido o protesto era uma referência à multidão que se aglomerou nas ruas do Rio durante o ato. Não há, no entanto, uma estatística segura a respeito do público presente uma vez que o país não tinha uma contagem oficial de público em situações como essa.
O que se sabe ao certo é que o total de manifestantes saltava aos olhos diante do que se observava nos protestos da época – uma consequência direta da crescente insatisfação popular com o regime militar.
Batalha decisiva
Naquele sombrio 1968, a então estudante de Ciências Sociais Linda Taya contava apenas 22 anos e tinha acabado de ingressar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) quando se sentiu conclamada a se somar aos manifestantes que bradavam contra o golpe de 1964 e seus desdobramentos.
Hoje com 71 anos, ela conta que o passar do tempo já apagou parte das lembranças do dia, mas não foi capaz de comprometer a comoção gerada pelo protesto.
"O que mais vem à tona, em primeira mão, é a emoção daquele momento, [com] todo mundo seguindo, uma enormidade de pessoas que protestavam com relação àquilo e com relação a tudo que estava existindo naquele momento em termos políticos", conta.
Martins acrescenta que um dos destaques da passeata era o caráter plural da massa de manifestantes que se aglutinavam pelas ruas cariocas para engrossar o coro contra as atrocidades da ditadura.
“O movimento estudantil ganhou uma batalha decisiva e não ganhou sozinho, porque muitos artistas foram pra manifestação, muitos intelectuais, sindicalistas, o povo em geral -- office boy, contínuo do prédio, trabalhador. Foi uma coisa de proporções monumentais”, recupera o jornalista.
Maria Aparecida Aquino destaca que a diversidade de atores presentes no ato assinala que, ao contrário do que achavam alguns grupos do período, a oposição ao regime era forte e combativa.
“Isso quer dizer que a sociedade civil no Brasil estava muito articulada, e articulada em torno de uma ideia que é ser contra a manifestação do regime, que é um regime ilegal e ilegítimo, constituído a partir de um golpe de Estado”, complementa.
Convulsão social e AI-5
Em um resgaste histórico, a professora ressalta ainda que o momento era considerado dramático para o Brasil porque o país sofria um enrijecimento do regime inaugurado com o golpe de 1964.
Em março do mesmo ano, por exemplo, os opositores da ditadura assistiram, atônitos, à morte do secundarista Edson Luís, assassinado pela polícia durante um protesto. Na intenção de maquiar o episódio, o caso do estudante foi oficialmente tratado como suicídio.
O jovem não tinha envolvimento com o ato ou com movimentos políticos e sua morte causou uma convulsão social no país, que passou a contar com respostas ainda mais duras às manifestações populares.
Mais tarde naquele ano, em 13 de dezembro, a população foi surpreendida com o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), instrumento utilizado para suspender uma série de direitos democráticos.
Nesse contexto, Maria Aparecida Aquino afirma que a “passeata dos 100 mil” precisa ser compreendida e interpretada à luz do momento histórico em que se insere.
"Ela não pode ser vista isoladamente. Tem que ser vista num conjunto de manifestações que mostravam qual era a condição do Brasil naquele momento. Então, a passeata é um dos elementos muito significativos. Ela mostra um Brasil ativo e forte naquele momento e se manifestando contra as formas de violência [utilizadas] por parte do Estado", pondera.
Edição: Diego Sartorato