Oligopólios de agroquímica e Big Data põe em risco a alimentação saudável
Desde 2016, o noticiário do agronegócio vem sendo chacoalhado por informações, muitas vezes contraditórias, acerca das fusões e aquisições entre as grandes multinacionais de agrotóxicos e sementes. Hoje, dois anos depois, os processos em curso já caminharam o suficiente para podermos ter um olhar mais claro sobre quem controlará nossa comida daqui para em diante. Infelizmente, o panorama não é dos melhores.
Processos de fusão e aquisição de empresas do porte de Bayer, Monsanto e cia. não são simples. Envolvem, em primeiro lugar, um acordo entre os acionistas. Em seguida, é preciso ter a aprovação dos órgãos reguladores da concorrência em todos os países onde estas empresas atuam. Muitas vezes, são colocadas condicionantes que precisam ser cumpridas pelas empresas. Finalmente, é preciso que haja dinheiro disponível para efetivar o negócio.
O mês de junho de 2018 marcou o final do último processo que ainda estava em curso. Temos agora a seguinte situação:
Ainda em 2017, a estatal chinesa ChemChina adquiriu a suíça Syngenta por U$ 43 bilhões. Esta foi a maior compra estrangeira de uma empresa chinesa. No mesmo ano, as estadunidenses Dow e Dupont se fundiram, em um negócio no valor de U$ 130 bilhões. Finalmente, este ano a Bayer comprou a Monsanto por U$ 62,5 bilhões, na maior negociação estrangeira de uma empresa alemã. São cifras impressionantes, que ilustram o poder corporativo que agora repousa sobre as mãos destas gigantes.
Além dos grupos de acionistas (holdings) como Black Rock e Capital Group, que possuem percentuais significativos de ações de todas estas empresas, há mais um ator beneficiado neste jogo: a Basf, outra gigante alemã do mercado de agroquímicos.
A existência dos órgãos reguladores da concorrência (ou antitruste) já algo por si só absurdo. É como se o capitalismo pudesse se auto-controlar através de uma mão não tão invisível assim, evitando o surgimento de monopólios. O problema é que a tendência do capitalismo é justamente essa, e evitar os monopólios seria ir contra a própria existência do capitalismo. Ou seja: ou os órgãos antitruste evitam o funcionamento do capitalismo, ou eles não existem de fato. E é claro que a segunda opção é a correta.
Como forma de evitar o monopólio nos mercados de sementes, agrotóxicos e agricultura digital, a Bayer será obrigada a se desfazer de uma grande divisão de agrotóxicos e sementes – a LibertyLink, bem como sua divisão de agricultura digital. Pareceria justo, caso não existisse apenas uma empresas capaz de se apossar destes ativos: a Basf. Assim, para evitar o monopólio, a solução é fortalecer o oligopólio.
Cabe lembrar que, dias após a conclusão da negociação, a Bayer anunciou o fim do nome Monsanto. Para além de todas as evidências de que se trata de esconder a má-fama da empresa criadora do agente laranja, entre outros, há uma grande preocupação em muitos países: o que acontecerá com os milhares de processos judiciais contra a Monsanto? O caso da DowDupont é ainda mais preocupante, já que a Dow comprou a empresa Union Carbide, responsável pelo terrível crime de Bophal, onde dezenas de milhares de pessoas morreram e outras sofrem até hoje por conta da explosão de uma fábrica de agrotóxicos. Quem é responsável hoje por este crime?
Big Data e agricultura digital por trás das fusões
A grande motivação por trás destas movimentações de mercado é, obviamente, aumentar o lucro dos acionistas. A fusão entre as empresas traz, de imediato, cortes de custos operacionais em setores onde ambas atuam. Além disso, um mercado com menos concorrência demanda menos investimento em inovação, e permite que as empresas pratiquem preços mais altos.
No entanto, há fatores de mais longo prazo que também motivaram as fusões. Além de tentar apagar as histórias vergonhosas destas empresas, outro fator importante é o investimento na chamada “agricultura digital”.
Em 2013, a Monsanto comprou por U$ 1 bilhão a startup The Climate Corporation, empresa especializada em dados climáticos para a agricultura. Em um mundo onde as mudanças climáticas podem trazer sérias implicações para a agricultura, o controle sobre estes dados é fundamental.
Ao mesmo tempo, as também gigantes corporações do mercado de máquinas agrícolas como John Deere, New Holland e Kubota vêm investindo cada vez mais em sensores capazes de analisar o solo, sementes e plantas. Através de tecnologias como os sensores hiperespectrais, é possível detectar a quantidade de nutrientes minerais no solo, identificar doenças nas folhas e monitorar a quantidade de água presente nas plantas.
O recolhimento de dados em massa – informações sobre cada centímetro de solo, vegetação e clima – gera uma quantidade gigantesca de dados, que não é nada simples de ser tratada. O famoso “Big Data” pode ser entendido justamente como o conjunto de técnicas necessárias para transformar uma massa de dados como esta em informações úteis.
O caso do Facebook é mais familiar para nossa compreensão: apenas uma empresa conseguiu que 2,2 bilhões de pessoas (1/3 dos habitantes da terra) criassem um perfil, onde compartilham dados pessoais como relações de amizade e parentesco, preferências de consumo, hábitos, locais que frequentam, opiniões políticas etc. Cada usuário desta rede usufrui dos dados que fornece através de recomendações personalizadas de amizades, atualização da timeline com as notícias de sua preferências, entre outros “benefícios”. O Facebook, por sua vez, vende estes dados pessoais para empresas que querem dirigir anúncios diretamente para seu público bem específico, como gestantes no 3o mês de gravidez, adolescentes deprimidos com tendências suicidas, e assim por diante. É possível também atuar politicamente, dirigindo propagandas contraditórias sobre um mesmo candidato, para pessoas com posições política diferentes, como foi o caso na atuação da Cambridge Analytica na eleição de Donald Trump.
No caso da agricultura de precisão, o agricultor ao utilizar o maquinário equipado com sensores fornece seus dados de solo, culturas, doenças, sementes e clima para as empresas que fabricam estes sensores. Em troca, recebem indicações sobre as melhores época para plantio, as sementes mais indicadas, o uso de fertilizantes químicos na dose correta em cada local, e, dizem até, a aplicação mais racional de agrotóxicos, somente nos locais onde realmente há necessidade.
Na outra ponta, no entanto, é preciso entender: o que as mega corporações são capazes de fazer com esta massa de dados? A resposta ainda não está clara, mas certamente o que virá não é nada positivo. Sabendo, por exemplo, a produção de cada cultura em cada fazenda, é possível ter controle sobre a safra global, e sobre os mercados de commodities. A partir dos dados de clima e solo, é possível precisar a quantidade de água a ser desviada da população para o agronegócio. A indicação das melhores terras para se comprar também poderá ser oferecida como serviço.
Na outra ponta da cadeia, Amazon e Wallmart também estão expandindo seus tentáculos no mercado de alimentos através da compra de outras empresas. Imagine o que será possível fazer juntando os dados de produção com os dados de consumo?
Mais perguntas do que respostas
Apesar de haver no momento mais perguntas do que respostas, algumas tendências já são claras. Em primeiro lugar, a onda de fusões nas multinacionais do agronegócio vai continuar. Depois do primeiro ciclo, envolvendo o mercado de sementes e agrotóxicos (um mercado de U$ 92 bi, virão as transações envolvendo as empresas de máquinas agrícolas (U$ 135 bi) e fertilizantes (U$ 190 bi). Em relação a este último, ainda há uma forte participação estatal no mercado, pois há estreita relação com as empresas de mineração. E há ainda um mercado muito maior na logística, produção e comercialização de alimentos e bebidas, com muitas fusões à vista. Neste setor, vale destacar a presença do fundo de investimentos “brasileiro” (se é que o capital possui nacionalidade) 3G Capital, dos empresários e Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles, dono da AB Inbev, Burger King, Heinz, Kraft e outras.
Em segundo lugar, é importante olhar as movimentações do mercado sob a ótica dos ciclos tecnológicos. Agrotóxicos e fertilizantes químicos foram introduzidos ainda na Revolução Verde da década de 1960, e há hoje pouco espaço para seu desenvolvimento. Os transgênicos, já dos anos 2000, apresentam hoje mais problemas do que soluções, com muitas falhas ligadas ao aumento da resistência de plantas e insetos.
O futuro próximo apresenta dois caminhos: a segunda geração de transgênicos, com as tecnologias CRISPR/Cas, promete alteração rápida e precisa do código genético de plantas e a agricultura digital.
Em ambos os casos, quanto maior a concentração das empresas, maior a quantidade de dados que podem ser interligados, e maior o poder sobre a sociedade que esses dados podem conferir às empresas. E aí está uma das chaves para se compreender o movimento das fusões, além da natural tendência monopolista do capital.
Não resta dúvidas de que este desenvolvimento tecnológico não irá beneficiar a agricultura camponesa. Pelo contrário, pode acirrar os conflitos de terra, e dificultar ainda mais o desenvolvimento de alternativas descentralizadas de produção de alimentos saudáveis baseadas na agroecologia. Empresas maiores terão mais poder de lobby sobre o Estado, e o ataque corporativo aos marcos legais pode se acirrar.
O mercado da comida, que gera doença desde a produção envenenada do agronegócio até a fabricação dos ultraprocessados, tende a ficar cada vez mais concentrado, ameaçando a soberania alimentar dos povos.
Neste contexto, a agricultura camponesa de base agroecológica é a resistência cada vez mais necessária para termos uma comida de verdade, diversificada, que gera saúde e soberania para quem planta, e para todos nós que comemos.
*Alan Tygel com informações do ETC Group
Edição: Juca Guimarães