A guerra de liminares ocorrida nesse domingo (8) em relação à soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) provocou grande repercussão no mundo jurídico, com diversas manifestações críticas sobre o comportamento dos atores do sistema de Justiça envolvidos no caso.
Para o constitucionalista Marcelo Neves, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), a polêmica que dominou o debate nacional nas últimas horas traz à tona diferentes problemas do processo do caso do triplex e fortalece o caráter político da prisão do petista.
Em entrevista ao Brasil de Fato sobre o tema, Neves destacou a importância da independência judicial para o Estado de Direito e defendeu a resistência jurídica e política como medida a ser adotada pelo campo progressista.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
Brasil de Fato: Como o senhor recebeu essa notícia sobre a 'guerra de liminares' de ontem?
Marcelo Neves: Eu recebi meio espantado e acho que foi um absurdo. O juiz Favreto decidiu e caberia recurso contra a decisão dele, mas não [caberia] impedir o cumprimento. É uma coisa totalmente diferente. Além do mais, o juiz Moro estava de férias e, pelo que se soube, fora do país ele atuou, e não pode atuar, principalmente porque o ato não foi contra ato dele, e sim do juiz da 3ª Vara, que é de Execuções [Penais], que não tem a ver com ele. Mas [foi] pior ainda porque ele está desrespeitando a decisão de um desembargador, que está acima dele. Isso é crime previsto no Código Penal que leva de três meses a um ano de prisão. Então, ele atuou criminosamente para impedir a soltura de Lula.
Quando se busca o Gebran [Gebran Neto, relator da Lava Jato no TRF 4], que é do mesmo nível deFavreto, o Gebran não poderia atuar porque não é plantonista. Ele poderia depois participar da decisão da turma que iria decidir o mérito final do habeas corpus (HC), mas nunca atuar naquele momento. Ele usurpou a competência, o poder jurídico do Favreto ao decidir, por isso o Favreto, corretamente, insistiu, mas eles criaram um novo artificialismo, que foi o Ministério Público dizer que havia conflito de competências, e aí entraram com o presidente do Tribunal [atuando]. Mas, quando há conflito de competências, quem resolve é o Superior Tribunal de Justiça (STJ), e não o juiz presidente. Só quem tem razão nesse contexto é o Favreto.
Você pode até discordar da decisão dele, mas, para isso, teria que haver um recurso imediatamente para o STJ, mas nunca haver o descumprimento da decisão. Isso, no mundo jurídico, a gente chama de ‘teratologia jurídica’. É uma coisa tão absurda que, para nós, é realmente chocante de ter ocorrido.
Isso é uma ditadura da toga. É uma postura parcial e mesmo corrupta – não no sentido do financeiro, mas é um Poder Judiciário que está vendido ao poder político dominante, vendido às elites, e não atua para aplicar a Constituição e a lei. Pelo contrário, usando uma metáfora grosseira, o Judiciário está cuspindo na Constituição e, dessa maneira, está cuspindo e escarrando no povo brasileiro, porque o constituinte é constituinte popular, se baseou na vontade popular.
Uma das coisas das quais mais se tem falado é sobre a importância de garantir a independência judicial. Em que medida aos fatos de ontem comprometem o Estado de direito?
Vejam bem, qual é a noção básica do Estado de Direito? É que os poderes da Republica atuem dentro dos limites da lei e da Constituição Federal (CF). O Judiciário é quem tem mais vinculação ao Estado de Direito porque ele mesmo é encarregado de aplicar a lei e a CF. Quando temos um regime em que a lei e a CF são deixadas de lado, evidentemente, o Estado de Direito está apenas na aparência, mas ele não ocorre realmente na prática. Então, nós temos regras e normas de um Estado de Direito, mas elas são desprezadas, desconsideradas e, portanto, na prática, nós não temos Estado de direito no Brasil.
Com esse Judiciário da forma que atua, à margem da lei e da Constituição, evidentemente, nós estamos antes no que se tem chamado de um Estado de exceção judicial. O Judiciário mesmo quebra o Estado de Direito e impõe um regime excepcional para alcançar fins políticos que, nesse caso, é a exclusão do presidente Lula da vida política.
Há juristas dizendo que um tipo de HC como esse impetrado pela defesa do Lula deveria ter sido encaminhado ao STF ou ao STJ porque a jurisdição do TRF 4 no caso já estaria esgotada. Como contrapor esse argumento?
O argumento do juiz Favretto e daqueles que impetraram o HC é de que eles tinham um fundamento novo. No direito, quando você tem um fundamento que é diverso daqueles que levaram à decisão anterior, não procede esse argumento do esgotamento de instância. Você pode até criticar o argumento, aí tem que recorrer, mas não deixar de cumprir a decisão judicial.
Na sua avaliação, o comportamento recente do STF pode ter alguma influência sobre o que ocorreu ontem?
Evidentemente, a decisão mais recente do STF – nos casos de José Dirceu (PT) e também da Gleisi Hoffmann (PT), mas principalmente no de Dirceu – dá amplos elementos para crer que poderá ocorrer a mesma orientação para o caso de Lula. Eu não sei em que medida isso influenciou a decisão do Favreto e nem dos outros ministros, mas entendo que, em parte, o que ocorre é que o TRF 4 quer se imunizar para impedir qualquer movimento que venha possibilitar a soltura do Lula. E também por parte do Moro, que atuou criminosamente, no meu entender, nesse caso.
Moro já tentou, no caso do José Dirceu, passar por cima do Supremo, exigindo que ele usasse a tornozeleira [eletrônica], quando o HC do Supremo não determinava isso e quando ele não era mais juiz de Execução. Não cabia mais a ele, portanto. Essa postura do que a gente chama de “República de Curitiba” e também do TRF 4 é buscar todos os meios para impedir uma solução favorável ao Lula.
E o supremo, nesse caso, está um tanto perdido, por isso eu acho difícil o Supremo ter uma força para ter influenciado a decisão do Favretto. Eu acho que, na verdade, o Supremo está na corda bamba. A gente não sabe qual o caminho dele porque ele não tem demonstrado orientação consistente. Um das exigências do Estado de direito é a consistência, a coerência das decisões. O Supremo não demonstra isso. Ele decide casos que favorecem alguns e, com Lula, as decisões são muito 'rigorosas', sem fundamento na lei e na CF.
Acho que o Supremo pode apenas ser um fator de atordoar, de tornar essa situação de insegurança ainda maior porque os tribunais que são inferiores ao STF têm um exemplo muito negativo nele de imprecisão, de imprevisão. Então, isso leva a um Judiciário que atua criando insegurança jurídica, e o que a gente precisa no direito, em primeiro ponto, é ter o mínimo de segurança jurídica.
O que o senhor acha que caberia agora à defesa do Lula? Vale uma atuação em diferentes frentes?
Acho que tem que ter a resistência política dos setores de militância, da mídia alternativa. Todos esses setores devem estar criticando essa atuação judicial. E também no plano internacional [deve-se] divulgar amplamente os absurdos que estão sendo praticados. Não excluo que possam os advogados [do Lula] também tomar alguma medida judicial contra a decisão do presidente do Tribunal, e essa decisão poderia implicar um encaminhamento para o STJ, mas preferencialmente para o STF.
Edição: Rafael Tatemoto