Em fevereiro deste ano, duas travestis presas em Presidente Prudente, interior de São Paulo, foram transferidas para uma unidade prisional feminina após determinação do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que, ao receber denúncias de violência psicológica e física, avaliou que as presas deveriam cumprir pena em estabelecimento prisional compatível com sua identidade de gênero.
A decisão abriu precedentes para discussões em relação à situação de pessoas trans, indivíduos cuja identidade de gênero não é definida pelo sexo biológico, no sistema carcerário. Com esse histórico, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) protocolou ação no fim do mês de junho, pedindo que o STF determine que presas transexuais e travestis possam cumprir pena em unidades prisionais femininas.
Carlos Magno, representante da ABGLT no Conselho Nacional de Direitos Humanos, acredita que é preciso uma determinação do Supremo para que juízes não julguem casos específicos a partir de moral própria ou orientação religiosa, mas sim a partir de uma jurisprudência. Na opinião do ativista, o ambiente prisional é ainda mais hostil para as pessoas trans.
“O espaço onde a pessoa tem que estar é o espaço onde ela se identifica. Elas estão em um ambiente que pode ser hostil e transfóbico pra elas. Todo tipo de violação é grave, desde a violência física até a simbólica e moral. Queremos evitar qualquer tipo de violação de direito dessas trans”, diz Carlos.
Symmy Larrat, mulher trans e presidenta da ABGLT, avalia que a população trans é mais vulnerável não só na prisão, mas em todo processo de acesso à cidadania na sociedade, o que se aprofunda no cárcere. “Eles fazem com as pessoas trans tudo o que fazem com os homens por entendem aqueles corpos como masculinos. Isso é extremamente violento, além da subserviência que acontece dentro do espaço do sistema carcerário. Essas pessoas não podem usar batom, peruca, mudar o cabelo… elas não podem usar nada que ajude na feminilização de seu corpo”, critica.
Transferência opcional
A primeira versão do texto da liminar recebeu críticas de ativistas da área por afirmar que as presas somente poderiam cumprir pena em prisão feminina, o que significaria uma transferência compulsória, não considerando as particularidades de cada indivíduo e suas próprias vontades.
Mas, procurada novamente pela reportagem, a ABGLT informou que o ponto citado foi corrigido por aditamento (instrumento utilizado para adicionar algo a liminar), e que, na versão da ação enviada ao STF, consta que a transferência do presídio masculino para o feminino deve ser opcional, ou seja, a mulher trans poderá optar por permanecer onde está, caso queira.
Segundo Márcio Zamboni, antropólogo e integrante do Grupo de Trabalho (GT) Mulher e Diversidade da Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São Paulo, a definição do que é ser uma mulher trans, usada pela militância fora do sistema prisional, não abrange toda a multiplicidade das vivências e performances do gênero feminino dentro dos presídios masculinos. Um homossexual que gosta de usar roupas ou acessórios femininos, por exemplo, não se identifica como uma mulher trans.
Doutorando, Zamboni estuda a população LGBT privada de liberdade, e com base em sua pesquisa, explica que as expressões “mona” e “bicha” são as formas mais comuns de auto identificação dos presos. É justamente por conta dessa multiplicidade de vivências dentro dos presídios que o especialista condena transferências compulsórias para os presídios femininos. O ideal seria uma análise caso a caso.
“Essa transferência só é desejável quando a pessoa que está presa quer. Ela pode, por uma série de razões, querer continuar na prisão masculina. Temos que entender que grande parte dos presos continuam mantendo relações sexuais e afetivas entre eles, especialmente as pessoas trans e LGBTs, que uma vez que estão na prisão masculina, conseguem vivenciar esses desejos”, afirma Zamboni.
Para o pesquisador, uma das principais violações contra essa população é o não uso do nome social. Em março deste ano, o STF decidiu que todo cidadão tem direito de escolher a forma como deseja ser chamado. O Supremo também reconheceu que pessoas trans podem alterar o nome e o sexo no registro civil sem que se submetam a cirurgia.
“O nome social é, na minha opinião, a demanda mais urgente além da possibilidade de expressar a feminilidade dentro da prisão. O direito de manter o cabelo comprido, de pintar a unha, de usar roupa feminina. É um direito fundamental ter uma performance de gênero feminina, assim como o nome social”, argumenta o antropólogo.
Celas separadas
Após denúncias de episódios de violência sexual e física, em 2014, alas específicas foram criadas para a população LGBT dentro do sistema carcerário, mas a dinâmica foi implementada apenas em alguns estados como Minas Gerais, Paraíba, Mato Grosso e Rio Grande do Sul.
No mesmo ano, entrou em vigor a Resolução Conjunta 1, editada pelo Conselho Nacional de Combate à Discriminação e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que prevê a possibilidade de transferência de “pessoas que passaram por procedimento cirúrgico de transgenitalização” para unidades prisionais do sexo correspondente. Essa mesma resolução instituiu o nome do uso social nas prisões.
Apesar de ser vista com bons olhos pela mídia e entidades LGBTs, Zamboni também é crítico a criação das chamadas celas especiais pois avalia que a decisão segrega as vítimas e não auxilia na mudança de comportamento de quem pratica a violência, além de criar um efeito simbólico negativo com a falsa sensação da existência de um privilégio para essa população, caso as celas separadas estejam em condições melhores, por exemplo.
Sobrevivência na prisão
Xampy Fontinhas, historiador, gay e egresso do sistema carcerário, concorda com a avaliação de Zamboni sobre a complexidade da população LGBT na prisão. Ele conta que, para os homens gays, a feminilização é uma regra. “Não somos nós que escolhemos ficar afeminados lá dentro. Isso é porque o mundo do crime só vê a gay e a bicha se ela for feminina. Se não for, ela não é bicha. Então, na verdade, isso é uma estratégia de sobrevivência. Tem mulheres trans lá dentro mas nem todo mundo é trans”, pondera Xampy.
A partir de sua experiência na prisão e convivência com mulheres trans, o ex-presidiário define o cárcere como um ambiente machista, homofóbico e transfóbico. “Eles desrespeitam completamente a individualidade dos presos, muito mais do preso LGBT porque tem a questão do machismo e da homofobia que está introjetada neles lá. Se você entrou e é bicha, eles raspam sua cabeça que é pra fazer você entrar passando vergonha. Isso para uma mulher trans é o fim, porque a feminilidade está vinculada ao cabelo e às expressões femininas do rosto dela”.
O historiador ressalta que é preciso falar sobre as violações da população LGBT no sistema carcerário, mas também sobre o que está por trás da prisão dessas pessoas. “As trans acabam sendo presas somente por estarem em situação de prostituição. Estar em uma avenida se prostituindo já é motivo para um policial chegar e atacar o que quiserem em cima delas e levá-las presas”, denuncia Xampy.
“Eles acham que podem fazer o que quiser com elas. É a pior forma de violência que existe. Pra eles, é como se fossem não-cidadãs. Uma mulher trans que está na rua não existe como cidadã. Então, eles ‘podem’ jogar droga nela, dizer que estava vendendo ou que estava roubando”.
Instituição falida
O Brasil é o terceiro país com maior número de pessoas presas, atrás dos Estados Unidos e China. Até junho de 2016, conforme Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) divulgado no final do ano passado, haviam 726.712 pessoas presas no país. Desse número, quase 40% são presos provisórios.
Na avaliação de Márcio Zamboni, o sistema carcerário é uma instituição falida que viola direitos humanos fundamentais em prol da manutenção e aprofundamento da desigualdade social. Neste cenário, o principal problema das mulheres trans é o cárcere em si, assim como para todos os outros presos. “A primeira coisa que temos que pensar quando falamos de pessoas trans e de pessoas não heterossexuais na prisão, é o porquê de estarem presas e como tirá-las da prisão o mais rápido possível”, afirma.
Zamboni ainda destaca que na maioria das vezes, as pessoas da população LGBT que cometeram crimes e estão presas, principalmente as trans, cometeram delitos porque não conseguem se integrar no mercado de trabalho formal e não conseguem se manter financeiramente.
“[As mulheres trans] Não têm acesso à direitos, sem ser por meio de crimes ou de atividades que estão no limite da ilegalidade como a prostituição. Temos que discutir a desigualdade que as levaram pra lá e a vulnerabilidade que elas têm perante a Polícia. Elas sofrem com certos excessos cometidos pela Polícia e isso também as tornam mais vulneráveis à prisão”, reforça.
Edição: Diego Sartorato