“Eu senti náusea, tontura. É ruim porque você quer vomitar, mas fica preso na garganta”, conta Danilo, um garoto de 13 anos, sobre a pulverização de agrotóxicos em plantações próximas à sua escola, localizada em uma zona rural a algumas horas de distância de Goiânia, capital do estado de Goiás.
“Me dá dor de cabeça. Eu tento me sentar do outro lado da sala de aula [do lado oposto de onde aplicam os agrotóxicos]. Nós temos um ventilador ele ajuda um pouco, mas o cheiro continua”, complementa o menino. O depoimento está entre dezenas de declarações coletadas pela Human Rights Watch (HRW), publicadas no relatório “Você não quer mais respirar veneno”, lançado pela organização na semana passada. O estudo apresenta dados recolhidos no período de julho de 2017 a abril de 2018, em sete zonas rurais localizadas nas cinco regiões geográficas do país.
Danilo faz parte de um número relevante de pessoas que sofrem com intoxicações agudas causadas pelo uso irregular de agrotóxicos e pesticidas em plantações próximas a áreas rurais, incluindo comunidades indígenas e quilombolas. Os envenenamentos são consequência da pulverização inadequada dos produtos tóxicos nas proximidades de suas comunidades, casas, escolas e locais de trabalho.
Reconhecida internacionalmente por atuar na defesa dos direitos humanos, a HRW alerta que há graves falhas na proteção de comunidades rurais expostas à dispersão de agrotóxicos. A intoxicação acontece quando os agrotóxicos se dispersam ou evaporam durante sua aplicação e seguem para áreas próximas nos dias posteriores a pulverização.
“Dava pra ver o líquido branco [no ar]. Mesmo cheirando, vai para o seu cérebro. Você sente um amargor na garganta. Você não quer mais respirar veneno – você quer respirar outro tipo de ar – mas não tem nenhum”, diz Jakaira, um homem com pouco mais de 40 anos, que vive em uma comunidade indígena no estado do Mato Grosso do Sul e sofreu uma intoxicação grave em outubro do ano passado.
Fora da lei
Segundo a legislação brasileira, a pulverização aérea de agrotóxicos deve ocorrer a 500 metros de povoações, cidades, bairros e áreas de mananciais de captação de água para abastecimento. Mas, o relatório evidencia que esta regra é frequentemente ignorada.
Em todos os locais visitados, os entrevistados afirmaram sentir os sintomas da intoxicação dos agrotóxicos recentemente aplicados nas plantações próximas.
“São comunidades locais que ficam lado a lado de grandes plantações e acabam sendo atingidas pela deriva dos agrotóxicos. Apresentam sintomas como dor de cabeça, enjoo, náuseas, vômito, irritação na pele e nos olhos, que são sintomas de intoxicação aguda", explica João Guilherme Bieber, consultor da Human Rights Watch e um dos co-autores do relatório. Sudorese, tontura e frequência cardíaca elevada são outros indícios de intoxicação.
Grávida, Eduarda, moradora de uma comunidade rural localizada a algumas horas da cidade de Santarém, no Pará, também sentiu os efeitos da pulverização próxima a sua casa.
“Eu me senti mal, com enjoo e dor de cabeça. Vomitei muito. Depois que comecei eu não conseguia parar. Tive que ligar para o meu marido pedindo ajuda. Estou grávida e minha principal preocupação era com meu filho, estava preocupada que isso pudesse afetar sua saúde”, declarou à organização.
Bieber critica o não cumprimento da lei que estabelece um distanciamento seguro da população para a aplicação dos agrotóxicos nas plantações.
“Observamos que essa norma é constantemente ignorada, violada. Para pulverização terrestre, por trator, não existe uma norma correspondente à nível nacional, alguns estados tem essa norma, mas mesmo nestes estados, ela é também é ignorada", destaca Bieber.
Veneno
Em 2013, cerca de 92 estudantes e professores foram intoxicados por agrotóxicos pulverizados sobre uma escola em Rio Verde, no estado de Goiás. A substância tóxica era o Engeo Pleno, da multinacional suíça Syngenta.
Cinco anos depois, o episódio segue impune e a realidade é ainda pior. De acordo com o Ministério da Saúde, foram registradas 13.982 intoxicações por agrotóxicos no país em 2017. Desse total, 1068 correspondem a trabalhadores agropecuários e 1.050 estudantes. O relatório aponta que muitas escolas dividem muro com as áreas rurais onde os produtos são aplicados.
Marelaine, professora em uma comunidade rural no sul da Bahia, relata à organização que a situação é frequente no seu local de trabalho. “O avião estava jogando do lado da escola e o vento trazia para a escola. Não dava para sentir o cheiro, mas dava para sentir a neblina, o vapor [de agrotóxicos] entrando pela janela. As crianças, entre 4 e 7 anos reclamavam que suas gengivas e olhos estavam ardendo”, detalha.
A Human Rights Watch também entrevistou estudantes e professores de uma escola rural no Mato Grosso, onde há plantações bem ao lado do terreno escolar. As salas de aula mais próximas estão a aproximadamente 15 metros dos campos.
Carina, que frequenta a Educação de Jovens e Adultos (EJA) da unidade de ensino, sofreu uma intoxicação aguda em 2017. “Eu comecei a vomitar várias vezes, até que vomitei tudo que tinha no estômago e continuei com ânsia. As aulas foram canceladas para todo mundo e eu fui para casa”, descreve.
Além das regiões bem próxima às escolas, moradores afirmaram que aviões realizam a pulverização sobre suas casas, interrompendo atividades cotidianas como o trabalho na horta e brincadeiras ao ar livre.
Pela vida
Lançada em 7 de abril de 2011 por mais de 30 organizações sociais, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, se mobiliza contra a falta de fiscalização que existe no Brasil em relação ao uso de agrotóxicos.
Segundo Alan Tygel, coordenador da Campanha, desde o início desse movimento uma de suas bandeiras prioritárias é a proibição da pulverização aérea.
"A pulverização aérea é o meio mais cruel de pulverização dos agrotóxicos que existe”, determina Tygel.“[A pulverização] é proibida na Europa há muitos anos, justamente pelos danos que pode causar: poluição do ar, das águas, dos rios, do solo, mas principalmente danos relacionados às populações que vivem nos entornos das áreas". O coordenador cita que no Espírito Santo e no Paraná há municípios que conseguiram proibir a pulverização.
"É uma arma química que tem como vítimas principais a sociedade e principalmente as crianças, com sua maior sensibilidade aos problemas que os agrotóxicos podem causar", reforça Tygel.
Retaliações
Outra constatação apresentada pelo relatório é a de que em cinco dos sete locais visitados pela organização, o recebimento de ameaças feitas por grandes proprietários de terras é frequente.
Na avaliação de Maria Laura Canineu, diretora do escritório da Human Right Watch no Brasil, o clima é de extrema intimidação e medo para as pessoas do campo.
“Documentamos ameaças físicas, de morte, contra pessoas que foram afetadas em suas comunidades, nos seus direitos à saúde, educação e que querem proteger suas famílias. Por isso têm medo de denunciar mesmo os casos de problemas de saúde em razão do poder, da influência e violência por parte de grandes proprietários de terra, fazendeiros, que são política e economicamente muito mais fortes”, denuncia a diretora Maria Canineu.
Ela comenta que a Secretaria Especial de Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar deu um sinal positivo de que acataria uma das diversas recomendações feitas pela organização, especificamente relacionada a criação de normas objetivas que proibissem a aplicação de agrotóxicos por via terrestre perto de escolas e comunidades.
“É a saúde e a vida de milhares de crianças, membros de comunidades rurais quilombolas e indígenas que estão sob risco", ressalta Maria Laura.
Bernardo, que está na faixa dos 30 anos e vive em uma comunidade quilombola localizada a algumas horas de Belo Horizonte, expôs um sentimento de frustração ao aguardar um posicionamento do Estado contra os efeitos da pulverização.
“Esta semana, um avião passou por cima da casa [de um vizinho] com o motor [de pulverização] ligado. A gente sente [os agrotóxicos] caindo na pele. Toda vez que bate, tem isso. Nós temos problemas com aviões há uns 10 anos. Fizemos várias ocorrências no quartel, delegacia [de polícia civil]. Não resolve, não existe justiça”.
A HRW também defende e afirma que atuará para que moradores de zonas rurais que estão sendo ameaçados recebam proteção do Estado.
*Os depoimentos dos moradores de zonas rurais apresentados nesta matéria foram retirados do relatório “Você não quer mais respirar veneno”
Edição: Juca Guimarães