Apenas Ceará, Maranhão, Pernambuco e Minas Gerais têm programas estaduais de proteção a defensores de direitos humanos em funcionamento. Pará e Bahia ainda estão com programas em fase de implantação. O Espírito Santo tinha um programa, que foi fechado em dezembro de 2016.
Este cenário da baixa cobertura de proteção nos estados fragiliza a atuação de militantes em um momento de acirramento dos conflitos no campo e de criminalização dos movimentos populares em todo o país.
Os estados que não têm programas próprios são atendidos por meio de convênio pelo Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), criado em 2004. Mas o governo federal, na avaliação das entidades da sociedade civil que acompanham o projeto, tem atuação frágil em territórios mais remotos — justamente, os que mais necessitam de atenção do governo.
A extrativista Osvalinda Maria Marcelino Alves Pereira, de 50 anos, é assistida pelo programa nacional há seis anos por causa da sua atuação no Projeto de Assentamento Areia, no município de Trairão, sudoeste do Pará.
Mas integrar o PPDDH não impediu que as ameaças contra ela e o esposo, Daniel Alves Pereira, continuassem. No dia 20 de maio, ambos tiveram um susto ao sair para colher maracujá: no quintal, encontraram duas covas com cruzes estancadas no chão, a 100 metros de casa. Um recado macabro com uma ameaça explícita.
Osvalinda relata que as perseguições ocorrem, sem cessar, desde 2012.
"Aqui é rota das madeiras da reserva. E, como na época eu já era presidente da associação de mulheres, eles falavam que eu saia para denunciar eles. Mas eu tava fazendo curso de capacitação ou atrás de um projeto. Eles vieram na nossa casa, em 12 homens todos armados, oferecer dinheiro para trabalhar para eles e parar de trabalhar com a associação. Não aceitamos de jeito nenhum. Nós abrimos a associação para trabalhar livre, não prisioneiras deles", disse Osvalinda.
O casal ainda aguarda a instalação de câmeras de segurança no local onde moram.
"O que eu acho é que o programa está muito lento. Ele está ajudando, depois dessa ameaça de agora, com a ronda policial. Não me sinto segura. A gente também não pode confiar muito nem nos policiais. Então nem tudo a gente relata para eles o que está acontecendo. Aqui, na região que a gente vive, é complicado", diz ela.
A agricultora conta que o acompanhamento do programa consiste em enviar relatórios, por telefone, ao escritório em Brasília. De acordo com ela, a equipe só esteve no território uma vez, há seis anos.
"Eles querem que a gente vá para Brasília, conversar lá. E eu queria que eles viessem para cá para ver nossa situação. Daqui, nós não vamos sair. É aqui que a gente trabalha e vive. Não adianta nada a gente sair daqui, não somos criminosos para sair do nosso lugar. E se a gente sair daqui, e as outras pessoas que são ameaçadas também? Como ficam?", questiona.
O mesmo reclama Rosivaldo Ferreira da Silva, o cacique Babau. A liderança vive na terra indígena Tupinambá de Olivença, localizada no litoral Sul da Bahia, e já sofreu inúmeras ameaças que culminaram em tentativas de homicídio.
Babau participava do programa baiano, que era executado pelo grupo Tortura Nunca Mais. No entanto, a política está suspensa há três anos, desde 2015, por falta de recursos. "Quando trocou de governador [Rui Costa, do PT, foi empossado em janeiro 2015], o novo não renovou o programa. E quem assumiu a proteção foi o [Ministério dos] Direitos Humanos de Brasília. E aí, realmente a qualidade caiu muito. Quando a gente tinha o acompanhamento pelo estado, eles estavam muito presentes", conta o indígena.
A transferência de programa, segundo a liderança, fez o acompanhamento cair bastante. "Hoje a gente não tem mais essa cobertura, que eles acompanhavam todas as situações. Agora, depois de conversar muito, que o programa abriu um WhatsApp para gente se comunicar porque eu falei que aqui a gente não tinha condição de entrar em contato com o programa se não for via WhatsApp. Hoje é mais fácil ter internet do que os telefones funcionarem. As operadoras fazem questão de não deixar funcionar nas aldeias os telefones.", disse o cacique Babau.
Falta de participação
O Comitê Brasileiro de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos integra entidades da sociedade civil e movimentos populares que monitoram a proteção de ativistas em todo o território nacional.
Até 2016, as entidades faziam parte oficialmente do Conselho Deliberativo que orientava o PPDDH. Mas, por meio de um decreto, a participação paritária da sociedade civil foi excluída.
A integrante do comitê, Júlia Lima, aponta que política de proteção nunca foi, de fato, institucionalizada no país e que agora vive um momento de esfacelamento.
"Claro que a fragilidade do programa de proteção se insere em um momento de enfraquecimento das políticas de Direitos Humanos, no geral. Ele [o programa] fica mais fragilizado porque os defensores atendidos precisam ser assistidos por outros órgão públicos para resolver questões estruturais. E esses órgãos também estão bastante fragilizados", pontua.
Ela explica que o objetivo do programa, mais do que promover medidas protetivas pontuais, é articular órgãos públicos e autoridades para resolver questões estruturais nas quais os defensores estão inseridos. "A política em si, só de fornecer proteção concreta, é uma coisa muito frágil e difícil de ser mantida se as questões estruturais em que esses defensores estão inseridos não são resolvidas", pondera Júlia.
Restrições
Em abril deste ano, Nazildo dos Santos Brito, o líder da Comunidade de Remanescentes de Quilombo Turê III, foi assassinado a tiros no município de Acará, no nordeste paraense.
Nazildo registrou diversos boletins de ocorrência na Polícia Civil e chegou a pedir proteção ao Ministério Público Federal em Belém quatro anos antes de sua morte, em abril de 2014, como relata a reportagem do site Amazônia Real.
A instituição considerou que a competência no caso não era federal. Em 2015, o caso foi encaminhado para o Ministério Público do Estado do Pará — estado onde o programa ainda será implementado.
Paulo Gilberto Cogo Leivas, membro da Procuradoria Regional da República da 4ª Região, cuja sede fica em Porto Alegre (RS), aponta o fato de a política ser muito restritiva como uma das principais falhas do PPDDH.
“As exigências para a inclusão de um defensor de direitos humanos no programa são muito restritivas. Eles exigem, por exemplo, que seja alguém efetivamente ameaçado, enquanto que muitas vezes o defensor está risco. Ele não recebeu nenhuma ameaça ainda, concreta, mas ele se coloca em uma situação de risco e isso não permite que ele possa ser protegido dentro do programa”, afirma o procurador regional.
Leivas também lista a falta de um marco legal nacional entre os problemas. Até hoje, o programa não tem uma lei que o sustente. Por isso, a negociação para implementar os programas regionalmente e quais são as contrapartidas variam muito de estado para estado.
“Toda política tem que ter um plano que discuta também responsabilidades de entes da federação, para que se envolvam e quais instituições se integram dentro dessa políticas. São várias questões que hoje ainda não estão respondidas por falta de um plano", diz Leivas.
Este plano já estava previsto no decreto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que criou a Política Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, em 2007, mas até hoje não foi implementado.
Coletiva
Outra fragilidade histórica da proteção em todo o país é que os programas não abordam a proteção coletiva, aponta Júlia Lima.
"[O programa nacional] entende algumas coletividades ameaçadas, mas olha pouco na perspectiva da comunidade em luta. A gente sabe que defensores de direitos humanos — enquanto lideranças, presidentes de associação ou representantes políticos — são representações da comunidade. Eles realmente podem tomar à frente, em alguns momentos. Mas a ameaça a eles, na verdade, é para intimidar toda a comunidade", diz.
É o que afirma cacique Babau: "Na questão indígena, não pode ser uma proteção individualizada. Claro que um cacique, às vezes, corre risco. Mas tem que ser uma proteção voltada para o povo indígena daquela nação que está sofrendo ataques."
A proteção coletiva, assim, poderia integrar toda uma comunidade que se encontra em situação de vulnerabilidade, por exemplo famílias em acampamentos de terra que sofrem ataques, como ocorreu neste final de semana contra militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no município de Marabá (PA). Pistoleiros atiraram no Acampamento Hugo Chávez, onde 450 famílias ocupam a Fazenda Santa Tereza.
Mara Carvalho, integrante do setor de Direitos Humanos do MST, afirma que o movimento tem abordado a proteção coletiva.
"Temos demandado aos espaços de defesa dos direitos humanos a construção, em rede, de um plano de Apoio e de Proteção para os militantes defensores dos direitos humanos que, no fazer da luta coletiva sofrem graves violações. O fortalecimento de mecanismos de proteção da coletividade se faz urgente nesse contexto de aumento da criminalização da luta dos movimentos sociais e dos seus lutadores", pontua.
Segundo o Ministério dos Direitos Humanos (MDH), a metodologia de atendimento do PPDDH pressupõe o encaminhamento da demanda para inclusão no programa. A pasta afirma que é necessário o preenchimento de alguns requisitos para ser beneficiário da proteção: voluntariedade na inclusão; representar um coletivo e ser reconhecido como representante legítimo desse coletivo; e que ameaça sofrida deve estar ligada às atividades do requerente enquanto defensor de direitos humanos.
"As ações realizadas pelo Programa preveem, para além da proteção à integridade pessoal, a garantia da continuidade da atuação das defensoras e defensores de direitos humanos por meio da articulação de medidas junto aos órgãos governamentais e sociedade civil, objetivando conferir visibilidade às lutas em prol das coletividades representadas", informa a assessoria do órgão.
Orçamento
A proteção dos militantes também enfrenta problemas mesmo nos estados que têm programas estaduais. O principal motivo é a falta de recursos.
Este é o caso de Minas Gerais, onde o programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos do Estado, instituído em 2014, acompanha 69 pessoas.
O programa mineiro perdeu mais de R$ 1 milhão de recursos. A verba, que em 2015 era de R$ 1,48 milhão, passou para R$ 420 mil em 2018. O programa teve redução de 62% neste ano em comparação a 2017, quando o valor atingiu R$ 1,11 milhão.
No âmbito nacional, o MDH anunciou uma suplementação orçamentária, de quase R$ 5 milhões ao programa, cujo orçamento total era de R$ 6,7 milhões. Segundo a pasta, este é o maior recurso já destinado a esta Política de Proteção desde a sua criação.
Júlia Lima defende que o orçamento seja repassado para auxiliar estados que têm menos recursos. O Rio de Janeiro, por exemplo, passa por uma grave crise fiscal no estado, mas não tem programa — mesmo tendo sido cenário de diversos episódios de violência aos direitos humanos, como representa o assassinato de vereadora pelo PSOL, Marielle Franco, em março deste ano. O último convênio do estado com o governo federal para a execução do programa ocorreu em 2013.
“A gente espera que esse aumento de recurso que eles têm anunciado realmente seja inserido nas fragilidades, para o programa ser melhor estruturado. Por exemplo, casos em que os defensores são atendidos de forma pontual, remota; ou a checagem da equipe em Brasília com o defensor por telefone ou por e-mail. Ou seja, situações muito frágeis mesmo”, diz Lima.
O Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública em 2017, que tramita atualmente no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com o objetivo obrigar a União a adotar medidas necessárias para elaborar um Plano Nacional de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos.
Edição: Juca Guimarães