O processo de titulação da fazenda Santa Tereza em Marabá, palco de conflito social que envolve o latifundiário Rafael Saldanha e famílias sem-terra do acampamento Hugo Chávez, é resultado de uma fraude grosseira expedida pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa). É o que afirma a nota assinada pelos movimentos populares, que atuam na região do sudeste do Pará.
O último episódio de violência contra os camponeses, ligados ao Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ocorreu na madrugada do último sábado (28). Uma sem-terra, que chamaremos de Ana, para preservar sua segurança, relatou que os pistoleiros chegaram atirando para dentro do acampamento.
O desespero se instalou na fazenda. Ela lembra que naquele momento as pessoas começaram a correr para tentar se proteger. Ana tem quatro filhos. Grande parte das pessoas que estavam lá eram mulheres, crianças e idosos, pouco homens.
“Eles chegaram atirando dizendo que era uma operação policial. Alguns de coletes encapuzados, outros com o rosto a mostra com fardas de policiais. Eu sabia que não eram policias, porque uma operação não é realizada de madrugada”, relembra.
A primeira ocupação na fazenda foi no dia 8 de junho de 2014, no entanto, as famílias foram despejadas no dia 14 de dezembro de 2017, as vésperas do Natal.
As famílias haviam reocupado a área onde estava instalado o acampamento Hugo Chávez no dia anterior, sexta-feira, 27 de julho. Elas haviam sido despejadas por determinação da Justiça do Estado do Pará e voltaram após seis meses, depois que se verificou que o processo de titulação do imóvel apresenta fortes indícios de grilagem de terra.
Fraude
Segundo a nota, assinada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), MST, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Centro de Assessoria Sindical Popular (CEPASP), verificou que o procedimento administrativo 2011/76613 que tramitou no Iterpa, apresenta diversas irregularidades. Dentre elas o prazo para recuperação de títulos de aforamento, que significa concessão por meio de título provisório da terra pública. O prazo para o resgate, de acordo com o que determina o Art 1º do Decreto 1.805/2009, era até o dia 23 de julho de 2009, contudo Rafael Saldanha solicitou o pedido um ano depois, em 2010.
Outro ponto apresentado pelos movimentos populares é que segundo o artigo 8º, III da Lei 7.289/2009 a regularização de imóveis onde exista conflito social é proibida. O processo nº 0006106-17.2008.8.14.0028, que consta na Vara Agrária de Marabá, comprova que a data é anterior à data do protocolo do pedido de regularização, mas “(...) Mesmo tendo conhecimento da existência desta ação na Vara Agrária, o ITERPA prosseguiu com o processo de titulação”, informa a documento.
A terceira irregularidade é que fazenda Santa Tereza possui uma área de 2.600 hectares, para conceder a regularização o Estado do Pará deveria solicitar autorização do Congresso Nacional, o que não ocorreu.
As denúncias sobre as fraudes foram apresentadas ao Ministério Público. O MST aguarda protocolo da ação de cancelamento do título de propriedade do imóvel e espera que a fazenda volte ao patrimônio público estadual.
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Para Charles Trocate, membro da coordenação do Movimento Nacional pela Soberania Popular Frente a Mineração (MAM), o problema gerado pelo Estado exige no mínimo um pedido de desculpas.
“Sobre esse dilema que agora nós estamos envolvidos num conflito que requer, por um lado, um pedido de desculpas do Estado para a sociedade em função que facilitou sem impor nenhuma, sem fazer nenhuma imposição, uma área pública que poderia resolver um grave conflito social paraense que é a disputa pela terra e pelo solo e ao mesmo tempo acelerar um processo de construção de um assentamento de reforma agrária”, disse Trocate.
A reportagem tentou contato com o advogado do latifundiário, mas sem sucesso. O Iterpa também foi procurado para se pronunciar, mas não retornou o contato.
Terror
O acampamento Hugo Chávez era instalado em parcela da fazenda e ficava a 30 quilômetros do centro urbano de Marabá, às margens da Rodovia BR-155. Depois da noite de violência as famílias saíram do imóvel e voltaram ao assentamento 26 de Março, que também fica na mesma rodovia e onde foram acolhidas depois do despejo realizado pelo Estado.
As cenas da madrugada do dia 28 ainda permeiam as lembranças da camponesa Ana. Os pistoleiros fizeram diversas ameaças de morte às pessoas e, nitidamente, estavam a procura das lideranças do acampamento. Ela lembra que a primeira coisa que os jagunços fizeram foram retirar os celulares, os melhores eles guardavam, os outros eram queimados, como o dela.
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Em meio ao desespero ela conseguiu correr apenas com um dos filhos, os outros ela não conseguiu agarrara-los e eles acabaram se perdendo na confusão. A filha caçula, de dois anos, ficou no berço, no momento do tiroteio Ana não estava em casa e não conseguiu pega sua pequena.
Ana avistou que um homem encapuzado havia entrado em sua casa. Ficou com medo de voltar. Eles procuravam as lideranças e ela fazia parte do grupo estadual do MST. Na confusão, ela acabou sendo levada por outras pessoas do acampamento na tentativa de protegê-la.
Ana lembra que viu a filha mais velha correr para casa para pegar a irmã caçula. A menina depois falou para a mãe que o homem vestido com farda de policial não permitiu que ela levasse a criança.
“Ela me disse que ele não a deixava pegar a irmã porque ela não era mãe, e que se a mãe quisesse levá-la teria que vim buscá-la, se não a queimaria viva”.
A adolescente relatou que uma outra mulher entrou na casa e pediu para pegar a criança, que indagou que ela não poderia ficar sozinha ali. Depois de muitos pedidos, o homem com capuz deixou. Além das ameaças muitas pessoas foram feridas pelos pistoleiros. Ana afirma que eles procuraram o hospital em Marabá, mas não conseguiram atendimento médico.
Para que as famílias não voltassem para o local, os jagunços queimaram os carros e as barracas que eles haviam improvisado, com tudo que havia dentro: roupas, sapatos, comida, brinquedos e documentos.
O MST iniciou uma campanha de doação paras as famílias. Ana relata que tem recebido bastante roupas, mas comida tem sido pouca. As pessoas que foram agredidas prestaram depoimentos na Delegacia de Conflitos Agrários em Marabá (Deca).
Em nota a Policia Militar afirma que aguarda o resultado das investigações da Deca de Marabá, a fim de tomar conhecimento das circunstâncias do fato ocorrido na propriedade reocupada.
Só após a conclusão dos trabalhos da Polícia Civil é que a Polícia Militar poderá se manifestar sobre a suposta participação de militares. Ainda segundo a PM cerca de dez pessoas já foram ouvidas como testemunhas no inquérito policial presidido pelo delegado Waney Alexandre, titular da Deca. O objetivo é apurar as circunstâncias e os autores do ataque a tiros ao acampamento Hugo Chaves.
Edição: Juca Guimarães