Por Igor Carvalho, da Pavio
“Jamais um ente como o MEC ou o Inep, em uma avaliação, pode aceitar teses que defendam, por exemplo, o holocausto, o apartheid, a segregação racial, a discriminação do ponto de vista religioso, de raça”, afirmou Mendonça Filho, ministro da Educação, no dia 2 de novembro de 2017, ao comentar os critérios de avaliação das redações do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que passaram por uma mudança drástica naquele ano. Dias antes, uma ação movida pela associação Escola Sem Partido havia derrubado a norma que zerava automaticamente a nota da redação que expusesse opinião contrária aos direitos humanos.
Apesar do revés, a presidente do órgão responsável pela prova, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio de Teixeira (Inep), Maria Inês Fini, recomendou reflexão permanente sobre o assunto, “como cidadã e educadora”. “Recomendo que os jovens reproduzam o respeito aos direitos humanos não só na prova, mas também na vida”, aconselhou.
Três dias depois, em 5 de novembro, o destino de milhões de jovens brasileiros começava a ser traçado. Um dos passos mais importantes na trajetória de um universitário, o Enem seria aplicado naquela tarde em milhares de unidades de ensino no país. A mil quilômetros da Esplanada dos Ministérios, uma escola no bairro de Santo Amaro, zona sul de São Paulo, já se preparava para fechar os portões quando recebeu uma apressada e cansada Bárbara Querino, estudante negra de 20 anos.
Se nas linhas pautadas de sua folha de redação, Bárbara Querino, conhecida como Babiy por amigas e amigos, relatasse o que viveu na noite anterior ao dia da prova, desafiaria a defesa teórica dos direitos humanos feita por Mendonça Filho três dias antes em coletiva à imprensa. Se prega e exige o respeito a negras e negros no Enem, nas ruas, o Estado reafirma cotidianamente uma lógica que os encarcera em massa.
Faltava pouco menos de 24 horas para a prova quando viaturas da Polícia Militar (PM) do Estado de São Paulo abordaram Wesley Querino, 18 anos, em frente à sua residência, na Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo. O jovem, irmão de Babiy, era suspeito de integrar uma quadrilha conhecida como “Piratas do Asfalto” que roubava veículos importados na região.
A defesa de Babiy alega que, avisada do imbróglio com o irmão, a garota foi até o local a fim de tentar ajudá-lo. Porém, acabou detida com Wesley, pois os policiais, que não teriam tido sucesso em uma tentativa de suborno (pediam armas e dinheiro), a levaram como “castigo”.
Além dos irmãos, outras quatro pessoas foram presas e uma adolescente foi detida. Todos foram levados ao 98º Distrito Policial de São Paulo, no Jardim Miriam. No trajeto, policiais usaram seus aparelhos celulares para fotografar os suspeitos dentro da viatura.
Já no dia seguinte, após passar 16 horas no camburão aguardando ser chamada para prestar depoimento ao delegado, Babiy foi liberada e se precipitou até sua casa, de onde partiu apressada para prestar o Enem. “Ela tomou banho e saiu correndo, estava com muito medo de perder a prova”, lembra Fernanda Querino, 38 anos, mãe de Bárbara e mais cinco filhos.
Bruno Cândido Sankofa, advogado de Babiy, conta que após a liberação da jovem, os policiais que haviam tirado fotos suas na viatura, as enviaram para grupos de outros agentes e para as vítimas dos carros roubados. Ela foi reconhecida, sem precisão, por duas pessoas que foram roubadas, uma delas afirmou que o cabelo de Bárbara era “parecido” com o de uma assaltante.
“A desconsideração da identidade negra é racismo. A vítima diz que só lembra do cabelo da Bárbara, então a primeira pessoa que aparece na foto com o cabelo crespo passa a ser considerada a assaltante. Isso significa não reconhecer as peculiaridades da identidade daquela pessoa. Significa dizer que todos nós, pretos, somos iguais”, protesta Sankofa, que aponta as violações do Estado na condução da ocorrência.
“Os direitos dessa menina foram atropelados por conta de sua cor e de seu endereço (periferia). O Estado cedeu imagens de pessoas que estavam sob a sua tutela. Isso é grave, muito grave. A Bárbara estava custodiada pelo Estado no momento em que foram cedidas imagens suas pelos policiais. Se a Bárbara fosse branca, de cabelo liso, moradora de um bairro nobre, seria respeitada pelo Estado”, encerra.
Os reconhecimentos parciais motivaram um mandado de prisão expedido contra Babiy e cumprido no dia 16 de janeiro deste ano. No documento, a jovem é acusada de participar de dois assaltos, realizados nos dias 10 e 26 de setembro de 2017.
No dia 10 de setembro, Babiy, que é dançarina e modelo, foi contratada para um evento no Guarujá, região litorânea do estado. Seu álibi é comprovado com fotos, vídeos e depoimentos de outras profissionais que trabalharam com ela naquela noite. “É um absurdo que minha filha esteja presa por um crime que não cometeu, no dia de um dos assaltos ela não estava nem em São Paulo”, lembra Fernanda Querino.
Mesmo diante do álibi contundente, Babiy foi presa e mantida encarcerada provisoriamente até que sua sentença seja conhecida. Já são sete meses de privação de liberdade. “Ela sabe que é inocente, mas está muito cansada e desgastada emocionalmente”, conta Sankofa. Olhando para trás, Fernanda se emociona e lembra que a filha “quase entrou em depressão. Ela está magra e abatida. Me preocupo muito com a asma dela que sempre ataca.”
Em 1 de agosto, ocorreu o julgamento de Bárbara Querino. A audiência durou dois dias e, segundo Sankofo, a sentença deve ser divulgada em até um mês. “Dada a situação e as frágeis circunstâncias da prisão, assim como das provas testemunhais apresentadas, acredito que haverá prioridade para que se divulgue com a maior antecedência o resultado.”
Por e-mail e dez dias antes de publicar a matéria, a reportagem do Brasil de Fato questionou a Polícia Militar de São Paulo sobre as acusações feitas pela defesa de Bárbara Querino contra os agentes que conduziram a prisão da agente. Até a divulgação do texto, nenhuma resposta foi enviada pela instituição.
Babiy aguardou sete meses para ter seu primeiro contato com um juiz. De acordo com um estudo publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em fevereiro de 2017, com dados oficiais dos Tribunais de Justiça dos estados, uma pessoa presa provisoriamente aguarda, no Brasil, em média, um ano e três dias pelo julgamento.
Quando desmembrados, os números assustam. Em Pernambuco, um suspeito fica, em média, encarcerado 974 dias (mais de dois anos e meio) até que seja jugado. No Rio Grande do Norte, a média é de 682 dias.
Resultado direto dessa anomalia jurídica, são 290 mil presos provisórios que aguardam que a suspeição de seus crimes seja corroborada, ou não, pela Justiça, de acordo com o Sistema Integrado de Informações Penitenciária (Infopen). Esse valor representa 40% do total de 726,7 mil pessoas encarceradas no Brasil, índice que nos consolida como terceiro país com maior população carcerária do mundo.
Os estados que carregam o maior percentual de presos provisórios são Sergipe (82,34%), Alagoas (80%), Ceará (66%), Bahia (59%) e Goiás (58%). O menor índice do país é no Amazonas (13,57%).
Em 2015, o Instituto Sou da Paz lançou o estudo “Presos provisórios, danos permanentes”, que analisa o uso da prisão provisória no estado do Rio de Janeiro no ano de 2013.
O estudo mostra que das pessoas presas no estado em 2013, 54% foram inocentadas na Justiça, 30% são consideradas culpadas e forçadas a prestar serviços comunitários e apenas 18,6% são condenadas a cumprir penas em regime fechado.
A pesquisa trouxe exemplos emblemáticos do descaso do Estado com o uso do artifício da prisão provisória. “Pedro, 44 anos, casado, foi preso na Rocinha com 16 gramas de droga. Usuário de droga, deficiente visual e esquizofrênico ficou 485 dias preso até ter sua doença reconhecida e seu processo extinto em sua primeira audiência”. Outro caso apresentado foi de João, que tem 20 anos. “Morador de rua, primário, foi detido por populares em Copacabana acusado de ter roubado uma carteira. Apesar de não terem localizado a suposta vítima nem o produto do roubo, o acusado ficou 287 dias preso até ser levado a julgamento, quando se reconheceu que não havia provas do suposto roubo.”
Consta na Constituição Federal a Presunção de Inocência e o uso desenfreado da prisão provisória pode feri-la, indica o juiz Rubens Casala, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
“Muitos dos problemas que estamos vivendo no Brasil passam pela transformação das pessoas em objetos. A Presunção da Inocência é uma conquista civilizatória, ela nos distancia da barbárie. Porém, estamos transformando as pessoas em objetos no Brasil. É importante lembrarmos que na história se produziu males enormes ao se relativizar a Presunção de Inocência, o nazismo e o fascismo aboliram a Presunção de Inocência”, explica o magistrado.
De acordo com a legislação brasileira, o acusado só pode ser conduzido à condição de preso provisório quando: sua liberdade coloca em risco a instrução do processo; haja indícios de que que ele pode ameaçar testemunhas ou destruir provas; houver entendimento de que ele pode voltar a cometer crimes ou garantia da ordem pública; houver risco concreto de fuga; e por abalo à ordem econômica.
Para Casala, o abuso da condição de encarceramento preventivo se dá pela leitura de duas das condicionantes. “São situações abertas, a ‘garantia da ordem pública’ e ‘abalo à ordem econômica’, dão margem para muita interpretação”, explica o juiz, que vê nessa possibilidade de “interpretação” uma fenda por onde o racismo pode se revelar. “Há uma diferença entre o texto legal e a norma que é produzida pelo intérprete. Na hora de produzir a norma, entra em jogo a forma como o intérprete coloca em jogo sua visão sobre o mundo, o racista será racista. Você tem uma série de processos de seleções que são feitos no rito da prisão: primeiro do policial na rua, depois pelo delegado, depois pelo promotor e depois pelo juiz. É evidente que os preconceitos sociais estão em jogo e produzem efeitos nessa escala.”
Para Marcelo Naves, da Coordenação Nacional da Pastoral Carcerária, não há dúvidas sobre a vulgarização do uso do recurso. “A prisão provisória se tornou uma regra no judiciário. É a suspensão da dignidade humana no sistema. O sistema carcerário tem como alvo a população mais marginalizada, não branca e pobre. Temos uma preocupação enorme com o acesso à defesa dessa população, que não é respeitado pelo Estado, nem mesmo nas audiências de custódia”, afirma.
Diante da aberração que se tornou o uso da prisão provisória, entidades de diversos setores da sociedade pressionaram para que fosse implementada a audiência de custódia no país, que só foi possível pois o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), que determina que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo”.
Assim sendo, em fevereiro de 2015 começaram a ser executadas as primeiras audiências de custódias no Brasil. Em seu site, o CNJ, um dos idealizadores do projeto, explica sua dinâmica. “Durante a audiência, o juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades”.
Mesmo diante desse aparato de argumentos para que se freie o ímpeto punitivista do judiciário, os números mostram que as prisões provisórias ainda são regra e não exceção. Dados do CNJ revelam que até junho de 2017 foram realizadas 258.485 audiências de custódias no Brasil, sendo que em 55,32% dos casos o juiz determinou a prisão preventiva para o acusado. Em 44,68% das oportunidades, determinou-se a soltura do suspeito. Apenas em 4,9% das ocorrências, houve relato de violência no ato da prisão.
O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) realizou um estudo nacional sobre as audiências de custódia e constatou a dificuldade de espaço para denúncia de violência policial no ato da prisão. “Verificou-se, em muitos casos, a falta de atenção por parte dos operadores e a ausência de providências após o relato de um crime – no caso, a tortura ou os maus tratos –, como restou demonstrado na fala de alguns juízes entrevistados durante o projeto. Nesse sentido, um dos juízes do Rio Grande do Sul afirmou só reportar ao Ministério Público os casos de violência visível por ter ‘medo de dar ensejo a uma investigação que poderá demonstrar que o relato era falso’”.
Das 588 audiências acompanhadas pelo IDDD, em 248 o juiz indagou o acusado sobre a abordagem policial no ato da prisão e o perguntou sobre eventual violência por parte do agente, mas em 266 casos esse assunto não foi levantado.
Em seguida, o IDDD mostra um diálogo sobre violência policial entre um juiz e o acusado em uma comarca no Rio Grande do Sul.
Juiz: você se lembra do policial que bateu em você? Preso: sim. Juiz: você reconhece o policial? Preso: sim. Juiz: você sabe o nome? Preso: não. Mas foi o policial que me levou para a delegacia. Juiz: mas você não sabe o nome? Preso: não, não sei. Mas reconheço o policial. Foi o policial que me levou à delegacia.
Depois disso, o juiz seguiu com os demais trâmites da audiência e nada mais foi dito em relação ao relato do preso e tampouco houve encaminhamento do caso para a corregedoria ou Ministério Público. O promotor presente na audiência não se pronunciou sobre o fato.
Para José Carlos Abissamrra Filho, diretor do IDDD, “o direito de defesa pode ser meramente formal, você dá o espaço mas não escuta o que o acusado tem a dizer. Esse espaço existe, mas a defesa não está sendo ouvida. Na experiência que temos, há resistência ao direito de defesa. A sociedade e os membros do Poder Judiciário tem sido refratários ao direito de defesa”, denuncia.
Para o juiz Casala, os números e estudos mostram que “infelizmente, essa tradição autoritária brasileira faz com que vários juízes, promotores e delegados percebessem a audiência de custódia como algo ruim. Quando essas pessoas passaram a controlar a realização das audiências de custódia, o que deveria ser um controle de garantias, passou a ser apenas uma afirmação da prisão. Para o juiz brasileiro, a prisão resolve diversos problemas”, sentenciou.
Por fim, Marcelo Naves lembra que ser preso provisório é uma condição sem retorno. “Não haverá mais normalidade em sua vida, há dificuldades no trabalho, também há dificuldades em estreitar os laços com o ensino e com a família. A comunidade e a sociedade já o condenaram”, explica o representante da Pastoral Carcerária, que não é otimista sobre o futuro próximo e a emancipação das populações mais pobres das prisões. “A construção da ideia de ‘crime’ é cultural, histórica e política. A noção do ‘criminoso’ delimita mais do que o seu ato. O ‘criminoso’, como perfil é o alvo, nem tanto a prática dita criminosa.”