Entrevista

Marcelo Semer: "A regra deve ser a liberdade"

Para o juiz de direito, STF relativizou a presunção de inocência por pressão da Operação Lava Jato

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
“Se é algo que o tema não está é pacificado”, afirma Semer sobre as prisões após condenação em segunda instância
“Se é algo que o tema não está é pacificado”, afirma Semer sobre as prisões após condenação em segunda instância - Foto: Agência Brasil

Marcelo Semer é juiz de direito e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Em entrevista ao Brasil de Fato, ele fala sobre as controvérsias envolvendo a prisão após condenação em segunda instância e os recentes posicionamentos do Judiciário brasileiro sobre o tema. Confira:

Brasil de Fato: Do ponto de vista jurídico e da garantia dos direitos individuais, como o senhor analisa o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a possibilidade de cumprimento da pena após condenação em segunda instância?

Marcelo Semer: A Constituição é muito clara em afirmar a presunção de inocência até o trânsito em julgado da decisão condenatória. A questão havia suscitado inúmeros debates na doutrina e na jurisprudência, até que o plenário do STF decidiu, em 2009, após uma série de julgados particulares neste mesmo sentido, que essa garantia impedia a prisão antes do trânsito em julgado, exceto quando exista algum fundamento cautelar, como a perturbação da prova ou indício de fuga, por exemplo.

Com a decisão do STF, até a lei foi mudada, em 2011, sendo aprovado, na Câmara e no Senado, um projeto que tramitava desde 2001. O artigo 283 do Código de Processo Penal, por exemplo, é o resultado da mudança. Ele dispõe sobre a necessidade de um fundamento cautelar para prender antes do trânsito.

Ocorre que, em 2016, sob pressão da chamada Operação Lava Jato, o Supremo mudou radicalmente seu entendimento. A ideia é de que o novo entendimento do STF facilitasse as prisões antes do trânsito, o que poderia servir para uma intimidação maior sobre os delatores. O STF muda seu posicionamento, então, e nem sequer se dá ao trabalho de discutir as leis que haviam alterado o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal, que seguiram baseados no entendimento anterior.

Quero deixar claro que a presunção de inocência não elimina a possibilidade de prender antes da decisão final, basta que estejam presentes motivos para tanto. E a jurisprudência, a meu ver até equivocadamente, tem sido extremamente tolerante com essa exigência. Temos [no Brasil] quase 300 mil pessoas presas antes do trânsito em julgado. O que a Constituição não admite, e não pode admitir, é a prisão automática. Executar a pena antes que ela se torne definitiva. O que fazer com a pena depois, caso haja absolvição ou redução [da pena]? Não tem como devolver o tempo de vida subtraído do réu. Então, a regra deve ser a liberdade, e a prisão provisória deve funcionar como exceção, ou seja, sempre que houver um motivo que a justifique.

Como o senhor avalia as constantes negativas da presidente do STF, a ministra Cármen Lúcia, em colocar em votação as duas Ações Diretas de Constitucionalidade (ADCs) que questionam o entendimento firmado, sob o argumento de que o tema está pacificado?

Se é algo que o tema não está é pacificado. Tanto que vários ministros [do STF] continuam concedendo, em casos individuais, habeas corpus impedindo a prisão automática, como, por exemplo, Marco Aurélio e Celso de Mello. Cármen Lúcia disse que não queria “apequenar” o STF colocando as ADCs em votação, em face do caso do ex-presidente Lula. Mas, ao não pautá-las, acabou fazendo o que pretendia evitar: decidiu a pauta de acordo com quem poderia ou não se aproveitar da decisão.

Quais as consequências dessa imprecisão jurídica para o cidadão comum brasileiro?

A consequência dessa mudança de paradigma do STF é que vai aumentar o volume das prisões provisórias ou execuções antes do trânsito em julgado. Hoje beiramos os 40%. Vamos ver em quanto ficaremos um ano depois.

A presidente do STJ se posicionou no dia 12/07 dizendo que não poderiam ser aplicadas ‘penas restritivas de direitos’ após condenação em segunda instância. Não haveria contradição em relação ao entendimento do STF já que a restrição de direitos é ainda mais branda do que a privação de liberdade?

Há inúmeras contradições da decisão do STF como nosso ordenamento. A questão das penas restritivas de direito é só uma delas. Mas poderíamos falar em outras: a necessidade de se aguardar o trânsito em julgado para executar precatório por dívidas do Estado, por exemplo. Porque o patrimônio, mesmo que público, deva ser tutelado de forma mais eficaz do que a liberdade? Ou a vitaliciedade de juízes e promotores: nenhum deles pode ser demitido antes de decisão condenatória “transitada em julgado”. Por que o raciocínio sobre “impunidades” tão vulgarmente esposado em plenário não vale também para juízes e promotores, que passariam a ser demitidos apenas com decisão de segundo grau? 

 

Campanha

A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) lançou, no dia 16 de julho, um abaixo-assinado em defesa da presunção de inocência. A iniciativa faz parte de uma campanha em torno da garantia deste princípio e pretende mobilizar outros setores da sociedade. O resultado da coleta de assinaturas, uma das principais atividades da campanha, será entregue ao STF em setembro.

A ABJD é uma associação nacional de juristas criada para reagir e combater a retirada de direitos fundamentais e defender o Estado Democrático de Direito. A associação é uma proposta de unidade entre diversas categorias de juristas. Entre eles, estão juízes,desembargadores, advogados, defensores públicos, professores, servidores do sistema de Justiça, promotores, procuradores estaduais e municipais e estudantes de Direito.

Em parceira com a ABJD, o Brasil de Fato lançou, neste mês de agosto, um tabloide especial sobre o tema. Confira:

Edição: Thalles Gomes