A Venezuela passa por uma semana decisiva. Começou a ser aplicado, na última segunda-feira (20), o plano de recuperação econômica, que inclui diversas medidas como aumento de salário, taxação de grandes fortunas e do setor bancário, internacionalização do preço do combustível e uma reconversão monetária, com o corte de cinco zeros da moeda venezuelana, o bolívar.
Para entender as causas estruturais da crise, a manipulação cambial e os efeitos do bloqueio internacional sobre a economia venezuelana, o Brasil de Fato entrevistou o economista Alfredo Serrano Mancilla. Ele é doutor em economia e diretor do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag). Espanhol de nascimento e latino-americano por opção, Serrano é autor do livro “El pensamiento económico de Hugo Chávez”, de 2014. Sua publicação despertou o respeito e o interesse dos chavistas, mas também o ódio da direita.
Brasil de Fato: Como explicar para fora da Venezuela a atual crise econômica do país? Se bem é certo que não há uma situação pobreza extrema, por outro lado não podemos negar que há uma crise latente.
Alfredo Serrano: Todo modelo econômico passa por etapas, fases e transformações. Assim também acontece com o modelo venezuelano, que depende de fatores internos e externos. Além disso, existem questões conjunturais e estruturais - como a forte dependência do setor petroleiro. Cerca de 95% das exportações desse país dependem do petróleo, inclusive em algum momento já roçou os 99%. Portanto, a relação com o preço internacional do petróleo é fundamental para entender a crise. Em 2014, o preço médio anual do barril de petróleo era de 88 dólares. Em 2016, esse valor médio passou a 33 dólares. Significa que uma economia que tem forte dependência do petróleo, terá menos ingresso de recursos em dólares. Se soma a isso o pagamento da dívida externa que, entre 2014 e 2016, girou em torno de 70 bilhões de dólares, o que é chamado pelos economistas "de forte restrição externa".
Também há a questão do desequilíbrio da balança comercial, pois a Venezuela importa mais de 80% do que consome no país.
Essa é outra questão que temos que levar em conta. A Venezuela depende fortemente de importações para abastecer o país e responder a uma demanda interna crescente, pois o chavismo vem desenvolvendo políticas distribuição de renda, como as Misiones (programas de distribuição de renda). Além disso, a taxa de desemprego da Venezuela ao longo dos últimos anos tem sido muito baixa e continua sendo: hoje ela está abaixo dos 7%. Aqui nos encontramos em uma situação que é um verdadeiro dilema econômico: Como lidar com a queda do preço do petróleo, o aumento do nível das importações para satisfazer o consumo interno e seguir pagando a dívida externa?
Como está o setor produtivo do país?
O país possui uma capacidade produtiva instalada alta, no entanto não tem um nível alto de produção. Para produzir é necessário investimento em maquinaria e ter uma grande capacidade produtiva instalada, o que já foi feito. A seguinte etapa é produzir e isso também requer investimento. E a terceira etapa de investimento do desenvolvimento produtivo, que deveria ter sido realizada, coincidiu com o queda do preço do petróleo. Como a indústria depende de insumos importados, essa etapa ficou prejudicada. De qualquer maneira, esse ciclo produtivo leva até 4 anos para mostrar resultados.
Tem outra questão relacionada sobre a baixa produção no campo, que é o fato da Venezuela ser o país mais urbanizado da América do Sul. Com isso perdeu-se um pouco da cultura camponesa.
Isso é correto. Desde os anos 30 a Venezuela sofre a maior migração do campo para a cidade da América do Sul. Mas, isso não foi feito voluntariamente pelo povo venezuelano. O que acontece é uma inserção da Venezuela no mundo através do setor petroleiro a partir dos anos 1920. Os centros de poder mundial definem que a Venezuela tem que ser um produtor petroleiro e lamentavelmente deixa de lado o setor produtivo do campo. Nisso a Venezuela se diferencia de outros países da região como a Bolívia e o Equador, que possuem um importante tecido social no campo, garantindo assim a soberania alimentar.
Como a pressão internacional impacta a economia venezuelana?
Existe uma forte pressão financeira internacional sobre a Venezuela, que não podemos deixar de considerar, porque se o risco-país é de 3 mil pontos, isso quer dizer que por cada dólar que pede emprestado, ele paga 30% mais de juros, em comparação aos EUA. O que representa, na prática, um encarecimento da dívida externa.
Por que um risco-país tão elevado se a Venezuela continua pagando sua dívida?
Perguntaria algo mais: porque os compradores de títulos da dívida venezuelana não renegociavam os títulos durante todos esses anos? Porque finalmente os compradores dos títulos da dívida estavam contentes com a Venezuela como pagadora da dívida. Isso segundo dados da Bloomberg (agência de notícias dos EUA, especialista em economia). Por isso a razão dessa pressão internacional não pode se sustentar tecnicamente. A Venezuela hoje tem dificuldade, inclusive, para pagar medicamentos, pois o sistema financeiro impede que os intermediários financeiros (bancos) recebam e repassem o pagamento. Agora já não é uma questão de que o governo venezuelano não pode pedir dinheiro emprestado, é que mesmo com recursos próprios a Venezuela está sendo impedida de fazer pagamento no exterior.
De que maneira o bloqueio internacional imposto pelos EUA isso afeta a vida do venezuelano comum?
Imagine uma família que tem um dinheiro no banco para pagar as despesas fixas da casa. E mesmo tendo o dinheiro, o banco não aceita fazer a transação para realizar o pagamento. É isso que acontece com a Venezuela. É por isso o que governo teve que redesenhar uma nova engenharia comercial, porque os modelos pagadores anteriores já não eram aceitos. Você não pode imaginar quão complicado pode ser tecer uma nova engenharia financeira, para buscar novos intermediários em países amigos. Isso requer um tempo, não se faz do dia pra noite.
Como funciona a questão do bloqueio dos bancos internacionais? No Brasil os bancos já não fazem transações relacionadas a empresários ou ao governo venezuelano, por medo de multa e sanções dos EUA.
Isso é o que fazem os EUA quando querem asfixiar uma economia. Durante anos eles aplicam essa mesma política em Cuba. Em relação a Venezuela, as sanções começam com o decreto presidencial de Donald Trump, que gera um efeito dominó. O decreto impossibilita e impede inclusive as empresas estadunidenses, que atuam na Venezuela, de fazer transações bancárias. Isso gera um efeito expansivo, porque aquelas pessoas ou empresas que pensavam fazer negócios com a Venezuela estão com medo e temem sanções diretas ou indiretas. Isso não deve ser menosprezado.
Outro fator a ser analisado é o câmbio paralelo. Como explicar a uma pessoa fora da Venezuela como funciona esse mercado ilegal de dólar?
Esse é um fator atípico. É como se existissem dois tipos de câmbio do real brasileiro em relação ao dólar. Um marcado pelo Banco Central e outro por uma página na internet, e que é divulgado pelos canais de televisão e pelos meios mais importantes. É como se o jornal O Globo, a Folha, a Veja dissessem que o valor do câmbio real não é aquele marcado pelo Banco Central, mas o que está definido em um site administrado em Miami (EUA). Isso fez com que a economia venezuelana tivesse uma tensão entre o câmbio legal e o ilegal. O que faz que esse câmbio fictício tenha credibilidade são os meios de comunicação nacionais e internacionais.
Qual é o papel da moeda virtual petro em toda essa crise econômica?
Toda essa situação provoca uma situação de emergia na economia venezuelana. O presidente assina os decretos de emergência, assume que a situação é complicada e propõe algumas ideias, como a criptomoeda, o petro. É uma maneira de driblar as sanções internacionais e captar divisas. Trata-se de uma moeda virtual que tem respaldo real.
Em sua opinião o que o governo venezuelano está fazendo bem e o que está fazendo mal?
Os economistas sempre tem a cômoda tarefa de apontar o que está bem e mal, mas é mais complexo que isso. O que o governo faz, para não esquivar de sua pergunta, é enfrentar uma situação difícil nesse mar complexo. O primeiro que tenta fazer é dar ênfase ao setor produtivo. Como enfrentar uma situação de poucas divisas e de um alto consumo interno? Produzindo. O governo estabeleceu assim uma agenda nacional bolivariana com 15 motores produtivos, para fomentar a produção. Algumas semanas atrás, foram aprovadas medidas que isentam de impostos os insumos necessários para a produção agrícola. Também foi aprovada uma lei de investimento estrangeiro produtivo.
Quais são os problemas centrais da economia?
A grande dificuldade está em avançar mais rápido em relação ao setor produtivo, mas a questão dos salários [baixos] também é determinante. Atualmente, o grande centro de gravidade da economia venezuelana é a questão dos preços, diante de um processo inflacionário. E a grande discussão é sobre as causas dessa inflação. Não existe receita mágica, seja na economia liberal (livre mercado) ou na keynesiana (regulada pelo Estado). Hoje o nível de abastecimento do país é cada vez mais elevado, mas o problema fundamental do momento é o preço dos produtos.
O que falta fazer para melhorar a situação atual?
Uma economia não pode permanecer em um processo inflacionário durante três anos. A cidadania sai perdendo quando existe um processo inflacionário tão elevado e durante tanto tempo, como está acontencendo também na Argentina nos últimos dois anos. Esse é o verdadeiro problema. Sabemos que parte da inflação é encomendada pelos inimigos externos, mas ela também é proveniente de questões estruturais. Outra questão que não se fala muito é o papel do sistema financeiro na Venezuela. Parece que o setor bancário venezuelano está participando desse processo que contribui para o aumento da inflação.
Mas uma parte importante do setor bancário não é estatal?
O percentual de participação dos bancos estatais no setor é mais baixo do que a gente imagina. Quando o governo nacionalizou o Banco Santander, que agora chama Banco Venezuela, em 2008, pensava-se que a participação pública era a mais importante, mas ainda está abaixo do 25% em termos de mercado.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira