O Brasil das injustiças históricas é injusto até mesmo na hora de debater certos temas, em que a realidade acaba por ficar oculta, como é o caso da incidência de tributos e da recorrente discussão sobre reforma tributária. “As pessoas reclamam que no Brasil se paga muito imposto, mas não é verdade. O problema é que os pobres pagam muito mais que os ricos”, afirmou o professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Eduardo Fagnani. Ele participou nesta quinta-feira (23) de um debate sobre a questão ao lado do auditor da Receita Federal Paulo Gil Introini e da assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) Graziella David. O encontro foi promovido pelo Le Monde Diplomatique Brasil e mediado pelo editor-chefe do veículo, Sílvio Caccia Bava.
No centro do debate, duras críticas à política fiscal praticada no Brasil, e algumas saídas para reverter as desigualdades e promover uma reforma de fato, e não apenas de fachada. Para os especialistas, o senso comum de que a carga tributária no país é alta empobrece o debate. “O Brasil cobra um patamar de impostos muito próximo da média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O problema é quem paga o imposto. Quando você olha para os países europeus, a maior parte dos tributos incide sobre a renda das pessoas que ganham mais e também sobre o patrimônio”, continuou Fagnani.
Países com melhores índices de desenvolvimento e igualdade praticam exatamente o oposto do Brasil que, para o economista, é um “ponto fora da curva”. “Aqui, metade dos impostos são sobre o consumo. Portanto, metade do preço de um automóvel é de imposto. Metade da pizza é imposto, do feijão. Por outro lado, aqueles que ganham mais de R$ 290 mil por mês, tem 70% de sua renda não tributada. Essa é a questão. As pessoas precisam entender que a distribuição dos impostos está na contramão de um sistema mais igualitário, porque os impostos incidem sobre o consumo e não sobre renda e patrimônio.”
A raiz da desigualdade na tributação, por essa ótica, está na proporção do que é pago. “Em média, diretores de grandes empresas no Brasil ganham R$ 3 milhões por mês. Para eles, um imposto de 50% no saco de arroz não é nada. Para o sujeito que ganha R$ 3 mil é muito. Essa é a injustiça. Não tributa o sujeito milionário e tributa muito quem ganha pouco.”
Reforma e neoliberalismo
Fagnani criticou o fato de que sempre que o assunto de possíveis reformas tributárias entra em pauta, seja na mídia corporativa, nas campanhas dos políticos guiados por economistas ortodoxos ou no Congresso, o foco é apenas a simplificação das cobranças. “Virou sinônimo de simplificação de sistema. Basta pegar seis impostos e transformar em um. Não enfrentam o problema da injustiça que está na base da desigualdade. Temos que ter um diagnóstico sobre a totalidade das anomalias do sistema.”
Graziella ponderou que a simplificação pode ter sua relevância, mas que não pode ser o principal pilar. “Claro que alguns tributos, principalmente os indiretos em grande volume não dialogam entre si. Isso pode criar uma confusão e os empresários podem ter dificuldades em prestar contas. Podemos simplificar, mas parar por aí é uma irresponsabilidade com o cenário de injustiça fiscal e de ampla desigualdade do país”, disse.
O ponto da simplificação, portanto, é mais eficaz para o empresariado, uma classe que, no topo dela, estão aqueles que menos pagam impostos proporcionalmente. Justamente esse assunto é o mais abordado. “Os que estão isentos são os que mais reclamam”, reforça Introini, para introduzir a questão das isenções fiscais que, para os especialistas, aprofundam o cenário de injustiça fiscal.
“O interessante é que, das isenções, a mais importante delas fica à sombra. Foi criada em 1995, no dia 26 de dezembro, pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Isentaram todos os sócios e acionistas de empresas da distribuição de lucros e dividendos”, continuou. Funciona da seguinte forma: quando os lucros de um período de empresas, incluindo multinacionais que exploram capitais nacionais e gozam dos benefícios, são divididos entre seus acionistas, essa renda está isenta. Nenhuma tributação.
“Então, um trabalhador assalariado tem que preencher sua declaração de imposto de renda com todos os rendimentos na parte de tributáveis. Informa seu salário, retém na fonte, tudo certo. Agora, o empresário informa seus lucros na parte de isento”, comentou Introini.
Não faltaram exemplos dessas injustiças durante o debate. “O Itaú, por exemplo, registrou um lucro de R$ 21 bilhões. Seus acionistas principais, que são quatro ou cinco pessoas, receberam os dividendos, como pessoa física, e ficaram isentos. Foram R$ 9 bilhões isentos de tributação. Enquanto isso, um professor paga 27,5% de imposto de renda retido na fonte”, comparou Fagnani.
Sistema de sonegação
Graziella reclamou da falta de transparência do sistema para revelar quem são os beneficiados pelas benesses do Estado neoliberal. Soma-se a isso ainda, a questão das sonegações, explicou Fagnani. “Metade do potencial de arrecadação da União não entra por conta de sonegação e isenções”, afirma, ao revelar um cálculo de R$ 800 bilhões anuais entre as duas lacunas de tributação. “Não podemos falar em reforma tributária sem enfrentar essa questão. Se revisarmos isenções e combatermos sonegações, podemos abaixar as alíquotas sobre o consumo de 50% para 25% sem reforma.”
A ausência de controle e combate à sonegação entra no bolo das isenções, como explica Introini. “Na década de 1990, com a lorota neoliberal que os países que propuseram não adotaram mas nós abraçamos, empurraram a carga que os ricos não pagam para os pobres. E tem a pérola. Se você não paga um tributo, você não vai sofrer punição criminal. Se o mal contribuinte pagar antes do juiz receber a denúncia não tem crime, está extinta a punibilidade”, explicou, ao acrescentar a possibilidade de renegociar as dívidas de sonegação por longos prazos, criando a chamada dívida ativa.
Isso acaba desaguando em uma lógica de “premiação” para os sonegadores. E as grandes empresas aproveitam, explica Graziella. “Elas (empresas) fazem um planejamento tributário agressivo. Fazem um planejamento desde o começo do ano das formas como eles vão evitar o pagamento de tributos. Chegam a planejar a sonegação. Ao deixar de pagar, pode prescrever. Se for pego, pode pagar e ficar livre. Só que desse período, ele deixou o dinheiro rendendo. O tempo de rendimento faz com que ele pague o processo só com rendimento.”
Edição: Rede Brasil Atual