Geralmente identificamos cortes ou tendências do eleitorado bastante padronizados: estado x mercado; esquerda x direita; progressistas x conservadores; vermelhos x azuis. Creio que as eleições deste ano, altamente atípicas, seriam melhor interpretadas a partir de outra chave: a tensão entre o progresso e a ordem.
Primeiro, uma ligeira definição dos termos.
Por progresso quero denotar a virada, uma reversão da recessão a partir do estímulo estatal, tanto em suas manifestações vividas pelos eleitores - desemprego; precarização do trabalho; redução de salários; peso das dívidas; redução da capacidade de consumo e poupança - como na recuperação da sensação de contínua melhora das condições materiais de vida e de possibilidade de ascensão, experimentados pelos brasileiros entre 2006 e 2013.
Na ordem, tanto se incluem as preocupações com a criminalidade, com a violência, com a corrupção, com o caos urbano, com a desorganização dos serviços públicos, como também a insegurança em relação às mudanças no campo dos valores e dos costumes. Aqui se potencializam conflitos em torno da legalização do aborto, da descriminalização do uso de drogas, dos direitos de minorias, da legislação antidiscriminação, das ações afirmativas, do conteúdo curricular e do alcance da atividade docente, entre outros.
A ordem
O terreno da ordem tem sido, por excelência, o ocupado pelas campanhas eleitorais à direita. Percebendo o apelo real de tais temas entre os trabalhadores, as candidaturas associadas ao golpe operam em dois sentidos simultâneos e conjugados. Valendo-se principalmente de seu aparato de meios de comunicação de massas e de alta organização no uso das redes sociais, amplificam os problemas, produzindo uma sensação generalizada de descalabro - na segurança pública urbana e na extensão da corrupção - e de “falência ético-moral”, que ameaçaria não só vidas e patrimônio pessoal, mas também a família, a religião e a formação dos jovens.
Dado o enraizamento histórico de tais percepções, reforçado por pregação religiosa e midiática, a caricatura, o desprezo, o rótulo que muitos progressistas são tentados a associar a elas não só são ineficazes como muitas vezes provocam uma defesa grupal espontânea, carreando ainda mais apoio aos candidatos conservadores.
Assim a direita não só dialoga com o desejo difuso de ordem, como, adicionalmente, abre um atalho para seu segundo objetivo: fugir da temática do progresso em que tanto sua folha de antecedentes - os resultados práticos do golpe e do governo Temer -, como o que têm a propor - mais desemprego, arrocho, menos serviços públicos, trabalho precário, reprimarização, financeirização e desindustrialização - são totalmente tóxicos como plataforma eleitoral.
As forças progressistas se defrontam com uma séria desvantagem na abordagem da ordem. Boa parte delas é vista como envolvida em corrupção, tendo se quebrado a confiança popular em que não eram “farinha do mesmo saco que os políticos de sempre”. Sua formulação de políticas públicas no campo da segurança confronta o senso comum vigente do “bandido bom é bandido morto”, da redução da maioridade penal, da ampliação de penas e da recusa a penas alternativas, da resistência à humanização das prisões e à ressocialização dos detentos. Aborto, igualdade de gênero, combate à discriminação de minorias, liberdade de cátedra, laicidade do Estado, abordagem crítica como método didático são assuntos de alta tensão social.
O progresso
O antídoto a esses venenos é a comprovação experimentada da capacidade da esquerda em prover, em tempo recorde, uma sensível melhoria da vida material e do acesso a bens e serviços que nem mesmo no imaginário popular eram contemplados. O progresso está indissoluvelmente associado aos governos da frente capitaneada pelo PT em anos suficientemente recentes para que sua memória não só seja fresca como sirva de base propulsora para o voto anti-golpe. Diz-se que “quem passou a usar sabonete nem esquece dele nem quer voltar ao sabão de pedra”. É intenso o desejo pelo “retorno dos bons tempos”, mesmo com todas as limitantes encontradas e não superadas.
Em um cenário com tais características estruturais - e em uma campanha eleitoral de curta duração, parcos recursos financeiros e com artificialismos inaceitáveis como o veto à presença na urna e nas ruas do líder campeão de votos -, a tarefa central e imediata das forças populares – impedir a homologação do golpe na urna, para buscar a reversão dos danos – exige que o progresso seja o centro da comunicação progressista, expresso em propostas simples, objetivas e de alta empatia com as necessidades materiais da maioria dos eleitores, sempre acompanhadas do reforço da lembrança do tempo bom que o golpe eliminou.
É no posicionamento das candidaturas anti-golpe como irrefutáveis portadoras do progresso – e em sua ação coordenada para além das disputas momentâneas entre si no primeiro turno – que reside a possibilidade de, aproveitando a enorme rejeição aos resultados do golpe e reduzindo o impacto negativo da temática da ordem bradada pelos golpistas, produzir-se uma vitória eleitoral do povo, passo inicial e incontornável para um longo e difícil processo de desmonte do retrocesso e de retorno pleno da Democracia e do Progresso.
* Artur Araújo é administrador hoteleiro, ex-Diretor da EMBRATUR e consultor em gestão pública e privada. [email protected]
Edição: Daniela Stefano