Por Marcio Zonta
É domingo. John move cuidadosamente, com um pedaço de pau, um líquido parecido com um mingau ralo, num tacho improvisado numa lata usada grande, que outrora armazenava óleo de cozinha. A bebida borbulha de quente sob um fogo feito com madeira de restos de barracos, uma das matérias primas que compõem a construção das casas dos trabalhadores da mineração na cidade de Rustemburgo, que fica há 100 km da capital sul africana, Pretória.
Nas famílias humildes na África do Sul é muito comum a produção de cervejas caseiras. Como o álcool foi proibido no período do apartheid (1948-1994), os negros do país desenvolveram uma bebida fermentada alcoólica que, muitas vezes, pode demorar até uma semana para ficar pronta.
A cerveja caseira é repartida em festas entre as famílias e as visitas dominicais. Bebe-se natural, mesmo no calor, onde uma cabaça roda de mão em mão confraternizando com o momento. No barraco de John não é diferente. Nas raras folgas na empresa que trabalha, a Anglo American Platinun, também produz alguns litros da cerveja.
O sol que bate na frente do seu barraco no final da manhã de um domingo não o aborrece embora, pingando suor, continue mexendo e monitorando o líquido diante de um fogo ainda mais intempestivo para que a cerveja não engrosse muito. Sua filha, Caterine - a mais nova, com 16 anos - desponta em meio aos barracos desordenados instalados num terreno acidentado trazendo mais madeira e é contida pelo pai: “Calma filha, esse fogo já é o bastante, não ponha mais madeira”. Caterine concorda fazendo um gesto de aceitação com a cabeça e adentra o barraco.
Da moradia precária que tem somente dois cômodos com um banheiro improvisado fora, para uma família de quatro membros, Caterine anuncia o almoço, que será servido do lado de fora. Cerveja pronta e descansando na lata, John se senta à mesa e se serve de arroz e um purê. Diferentemente da tradição brasileira, não há misturas. Terminado o almoço, John senta na cama onde o outro filho dorme no barraco apertado e descasca uma laranja serenamente. Divide metade com a filha, come o cítrico e repousa num cochilo interminável.
“Miseráveis”
A história de John parece até ficção, mas, infelizmente, é recorrente entre os funcionários das empresas de mineração na África do Sul. “Isso acontece nas maiores minas e processadoras de platinas do mundo. Em Marikana e Rustemburgo é rotineiro, vários trabalhadores e trabalhadoras foram afastados por problemas psíquicos depois de passarem por essa humilhação”, conta Porcia Nans, dirigente da União Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul (Numsa).
Assim como John, que mora em uma favela, estima-se que 60% dos trabalhadores da mineração sejam de fora do país ou do interior da África do Sul, e vivam em condições precárias, segundo o Numsa. Porcia chama atenção para a questão de que as empresas têm essa política de recrutar trabalhadores de outros países à procura de sobrevivência para superexplorá-los. "E por não terem casa para morar vão criando favelas próximas às minas onde trabalham", diz a dirigente.
Por outro lado, essa massa de “miseráveis”, como denomina Porcia, ao bater às portas das mineradoras, “permite condições para criação de um exército reserva de trabalho, uma estratégia para fragmentação da classe trabalhadora da mineração e a manutenção dos salários abaixo da média mundial”, elenca a sindicalista. A mineradora passa então a criar um clima hostil entre os trabalhadores e acirrar a xenofobia. “Sempre dizem: ‘tomem cuidado, os de fora vão tomar o lugar de vocês porque aceitam fazer coisas que vocês não fazem’! Veja que loucura”, menciona. O economista do Centro de Desenvolvimento e Informação Alternativa, Brian Ashley, que assessora sindicatos da mineração na África do Sul, tem alertado para esse modus operandi cada vez mais perverso das mineradoras, principalmente com trabalhadores vindos de Moçambique e Zimbábue, sem regulamentação trabalhista, pois em sua grande maioria estão ilegais na África do Sul. “Por essa situação ilegal você cria um leque de vulnerabilidade a esse trabalhador, pois ele não pode se filiar a um sindicato e nem reivindicar melhores condições e salários mais altos porque está clandestinamente no país e pode ser expulso, além de criar uma ‘concorrência desleal’ com os trabalhadores sul africanos, que passam a ser xenofóbicos com os de fora”, explica.
Terceirização total
A terceirização adotada pelas mineradoras na África do Sul como principal forma de contratação, tem determinado ainda mais o crescimento da miséria entre os trabalhadores sul-africanos e os que vêm de fora do país.
“Antes a legislação do país permitia que um trabalhador trabalhasse como terceirizado por apenas seis meses, posteriormente sendo contratado ou demitido diretamente pela mineradora; hoje esse tempo passou para três meses”, diz Porcia.
Tal mudança levou a uma precarização ainda maior no mercado de trabalho minerador. O vizinho de John, Manoel Figueira, passou por isso. Ele é moçambicano e vive hoje recolhendo lixo em Rustemburg, na favela às margens das mineradoras. “Fui contratado por três meses pela Anglo American Platinun. Depois fui demitido e recontratado. Fiquei uns dois anos nessa situação de ser contratado e recontratado, até chegar nessa situação extrema de desemprego em que estou há um ano e meio, procurando no lixo comida e recicláveis para sobreviver”, explica.
Emalahleni: a cidade do carvão
Tudo por aqui é cinza: os casebres, as poucas árvores que restaram, o solo, as crianças que jogam bola na rua, as mulheres e homens que andam na vila comida pela mineração, estendida para além de suas cercanias. Nada se difere da mina de carvão e da vida social cotidiana ao redor. A poeira do carvão democraticamente alcança a todos e todas, enquanto o lucro somente à mineradora anglo- australiana BHP Billiton, que explora carvão na cidade de Emalahleni, há 100 km da capital, Pretória. Uma zona miserável é forjada pela exploração de carvão na vila agrícola nos últimos 25 anos. Nas comunidades rurais que existiam antes da chegada da mineração de carvão e as que se formaram pela promessa de renda, emprego e prosperidade são iguais; não existe nada: água, eletricidade, escola, tratamento de esgoto ou qualquer sinal de serviço público. As famílias foram cada vez mais se aproximando da mina para se utilizarem dos rejeitos do carvão para fazerem o fogo, que propicia o preparo da comida; utilizam a água completamente insalubre para cozinhar e beber.
Quando raramente chega água potável, em um caminhão pipa, todos se transformam em inimigos na comunidade e o veículo é cercado desordenadamente. A briga é para ver quem consegue mais água em recipientes das mais diversas formas e tamanho. “Somos o sétimo país do mundo exportador de carvão, principalmente para Ásia, e olha o que produzimos internamente, barbárie e miséria”, esbraveja Mercia Andrews, da organização Assembleia das Mulheres Rurais (Rural Women’s Assembly).
Parceria público - privada
Emalahleni, que significa “o lugar do carvão” faz parte de uma região de exploração deste combustível fóssil desde os anos 1930 e contém um passivo ambiental extremo, oriundo dessa primeira fase da exploração de carvão que se findou em meados de 1960. Saindo da vila mais próxima à mina de carvão da BHP Billiton se encontra um cenário de destruição desse período anterior, onde labaredas saltam da terra aberta por rachaduras.
“O governo do apartheid fez uma articulação com uma mineradora internacional para garantir a atividade aqui nessa região por trinta anos, o que gerou muitos lucros para municipalidade e o tornou, no período de funcionamento da mina, o município mais rico da África do Sul,”, explica Matthews Hlabane, do Movimento Unitário de Comunidades Afetadas pela Mineração (Macua). Quando a exploração do carvão se tornou inviável e menos lucrativa, tudo foi abandonado. “A parceria público-privada funcionou enquanto a empresa foi beneficiada. Quando acabou a possibilidade de exploração, ela foi embora e deixou toda a desgraça social e ambiental na região”, comenta Matthews. A outra herança que a parceria público-privada deixou foi no centro da cidade; um complexo de meia dúzia de prédios administrativos, ocupado por executivos da BHP Billiton e de organizações internacionais como a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, em inglês), que diz combater a fome e a miséria na região.
Inferno
Ao olhar as frestas abertas na terra e observar o subsolo pegando fogo, não é possível imaginar como famílias convivem sobre esse passivo ambiental morando em barracos, sofrendo o risco de serem engolidos pelas crateras fogosas, que geralmente se abrem e engolem tudo que estiver por cima. “As pilhas de rejeito e o abandono das galerias de mineração de carvão podem causar graves problemas ambientais, em curto, médio e longo prazo, pois a drenagem ácida de mina é um dos mais graves, contamina rios e lençóis freáticos”, explica Caroline Gomide, geóloga e professora da Universidade Nacional de Brasília (UnB), que visitou a região.
Caroline explica porque o subsolo vive em chamas: “A combustão espontânea também é gravíssima, já que o carvão mineral é combustível e toda a camada rochosa pode espalhar a brasa que dificilmente será controlada, por isso realmente pega fogo”. A área totalmente imprópria e arriscada para viver serve de espaço para uma série de estrangeiros ilegais na África do Sul. “É uma comunidade mista que tem trabalhadores de outras partes do país, mas, em sua maioria, são trabalhadores que vêm de Moçambique, Zimbábue, Botsuana e Suazilândia. Todos entraram clandestinamente no país”, revela Matthews Leal de Souza, de Moçambique, mora na localidade. “A maioria das pessoas são vendedores ambulantes, não encontram trabalho fixo e vieram viver aqui. Ninguém quer viver nesse lugar mas nós só temos ele, mesmo parecendo o inferno”, diz.
Para a geóloga, o local deveria ter sido fechado pelas autoridades locais. “É muito difícil recuperar esse espaço. São áreas de grande risco de subsidência, processo geológico que é caracterizado pelo desmoronamento do solo e rocha sobre um espaço vazio, como as galerias de carvão”. Matthews aponta uma razão para a área ainda não ter sido interditada. “São vários os casos de barracos que foram engolidos pelas crateras em chamas, mas aqui está o subtrabalhador: se morrer não fará falta, ninguém se importa” ironiza.
Coordenação de Jornalismo: Nina Fideles Coordenação de Multimídia: José Bruno Lima Texto: Marcio Zonta Edição: Simone Freire e Daniela Stefano Ilustrações: Lucas Milagres
Parceria: Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)
Em memória de Adalberto Franklin, jornalista e historiador do Maranhão.