Por Marcio Zonta
As marcas de balas nas rochas, as cruzes, a vela acessa fazem parte do cenário constante em Marikana, um povoado que fica na Província de North West, na África do Sul, há uns 100 km noroeste de Joanesburgo. O silêncio e as preces dos moradores e trabalhadores todo 16 de agosto também já é uma rotina para lembrar anualmente os 34 trabalhadores assassinados pela Polícia Federal sul-africana em 2012, quando realizavam uma greve na empresa Lonmin, um grupo minerador britânico. Um momento que para muitos marca a maior chacina depois do término do regime apartheid e aponta para um colapso no acordo institucional, que apaziguou a segregação racial na África do Sul e instalou a democracia com a chegada de Nelson Mandela no poder.
Fim do acordo?
Para o historiador Ralfh Mupalang, os resquícios do apartheid na vida dos trabalhadores da mineração ainda são constantes, desde a moradia nas favelas, até os empregos e salários diferenciados entre negros e brancos nas empresas. De acordo com ele, a greve e o posterior massacre dos mineiros em Marikana, mostra que os instrumentos políticos surgidos com a democracia para minimamente organizar os trabalhadores sob duras condições de trabalho e de vida, passaram a não dar mais conta da situação no decorrer dos anos. “Os trabalhadores mortos no Massacre de Marikana estavam rompendo com os seus representantes sindicais, principalmente a União Nacional de Mineiros (Num)”, chama atenção.
Foto: Magno Costa
Existiria então um descontentamento com as instituições que representavam os trabalhadores e que formavam o bloco do governo a partir de 1994, com a chegada do partido de Mandela ao poder - Congresso Nacional Africano (ANC) - do qual o Num faz parte.
Tanto que antes do massacre, trabalhadores do sindicato AMCU (Sindicato dos Mineiros e Trabalhadores da Construção e Mineração), criado em 2001, estavam em greve há cinco meses. E cinco dias antes do massacre de Marikana, entraram em confronto com trabalhadores do Num, gerando dez mortes em 10 de agosto.
“O AMCU foi um racha dentro do Num, que é filiado à central sindical COSATU, que em conformidade com as políticas do partido Congresso Nacional Africano se distanciou dos anseios dos trabalhadores espoliados da mineração, abrindo espaço para AMCU, que tem assumido papel importante na organização dos trabalhadores da mineração”, elucida Ralfh.
O massacre de Marikana teria sido a tentativa de anular um processo social que não mais acordava com o pacto de paz social construído nas estruturas sindicais e governamentais na África do Sul.
“Quando saiu fora do combinado institucional proposto, os trabalhadores foram fuzilados”, indigna-se Joseph Mathunjwa, presidente do AMCU.
Foto: Magno Costa
Desde o fim do apartheid, há 23 anos, não se via tamanha violência do estado contra os negros trabalhadores. Por conta disso, o economista do Centro de Desenvolvimento e Informação Alternativa, Brian Ashley, acredita que há uma profunda ruptura no consenso social pós-apartheid. “O sinal para o seu fim foi o massacre de Marikana e a grande greve dos mineiros, mostrando nessa democracia uma dificuldade de lidar com a intensificação da luta de classes. Porém, não é apenas a solução negociada que se está rompendo, mas a legitimidade e a eficácia do ANC e de suas alianças como o fiador político do compromisso histórico de 1994”, argumenta.
Impunidade segue
Cinco anos depois do massacre, nenhum dos agentes envolvidos enfrentou a justiça, conforme apurou a Anistia Internacional (AI), que acompanha o processo desde o ocorrido, em 2012.
Em março de 2017, a investigação da polícia apresentou ao Parlamento uma lista de 72 agentes, incluindo o comissário nacional e o comissário do noroeste, que deveriam ser julgados pelo seu papel na morte dos mineiros.
Porém, até o momento nada se moveu. "É o 6º aniversário de Marikana e a Procuradoria ainda não se pronunciou. Não sabemos se os agentes serão julgados ou não", protesta Shenilla Mohamed, diretora executiva da AI na África do Sul.
A diretora da ONG denuncia a situação das famílias: "a vida das viúvas e dos mineiros não melhorou. As medidas sociais recomendadas pela comissão de inquérito a favor dos mineiros, em áreas como habitação ou condições de trabalho, continuam motivando um braço-de-ferro entre a Lonmin e as autoridades”, comenta.
A luta continua
Contudo, se o Massacre de Marikana demarca um aceno contra as lutas organizadas pelos mineiros e a chacina tampouco levou os culpados à punição, os trabalhadores seguem se organizando e realizando diversas greves no complexo mineiro de platina, que contém o trio Anglo American, Lonmin e Impala. “Logo após o massacre, os trabalhadores fizeram uma greve de três meses em 2012 por aumento de salário e melhores condições de trabalho nas mineradoras”, lembra o presidente da AMCU, Joseph Mathunjwa. Os últimos 10 anos demarcam um período de greve dos mineiros nunca antes visto no pós-apartheid, segundo o pesquisador brasileiro, membro do Comitê em Defesa dos Territórios Frente a Mineração, Carlos Bitencourt, o que levou empresas como a Anglo American a uma reorientação da estratégia internacional. A mineradora busca diversificação de seu portfólio de negócios, visando uma expansão para exploração de outros recursos minerais, como o ferro nos países onde atua, para atenuar os prejuízos obtidos com as greves na África do Sul. “O processo de fortalecimento dos sindicatos e a explosão de greves dos mineiros nos últimos anos no país sul africano foi um dos componentes que fizeram com que a empresa, para manter seus lucros, se estendesse para outras partes do globo onde os trabalhadores estão menos organizados, como o Brasil”, define Bitencourt. Brian alerta para os sinais de um novo período político para classe trabalhadora da África do Sul rompendo com os anos de hegemonia do ANC. “Nos próximos anos haverá oportunidades para a recomposição do movimento operário, possibilidades para o ressurgimento da união de lutas trabalhistas com as de comunidades e o potencial para estes de criar uma dinâmica para a formação de uma alternativa à esquerda do ANC, com fortes raízes na classe trabalhadora”, projeta o economista.
As 47 vítimas de Marikana, In memoriam:
Tembelakhe Mati, Hendrick Tsietsi Monene, Sello Ronnie Lepaaku, Hassan Fundi, Frans Mabelane, Thapelo Eric Mabebe, Semi Jokanisi, Phumzile Sokanyile, Isaiah Twala, Julius Langa, Molefi Osiel Ntsoele, Modisaotsile Van Wyk Sagalala, Nkosiyabo Xalabile, Babalo Mtshazi, John Kutlwano Ledingoane, Bongani Nqongophele, Cebisile Yawa, Mongezeleli Ntenetya, Henry Mvuyisi Pato, Ntandazo Nokamba, Bongani Mdze, Bonginkosi Yona, Makhosandile Mkhonjwa, Stelega Gadlela, Telang Vitalis Mohai, Janeveke Raphael Liau, Fezile David Saphendu, Anele Mdizeni, Mzukisi Sompeta, Thabiso Johannes Thelejane, Mphangeli Thukuza, Thobile Mpumza, Mgcineni Noki, Thobisile Zimbambele, Thabiso Mosebetsane, Andries Motlapula Ntsenyeho, Patrick Akhona Jijase, Julius Tokoti Mancotywa, Michael Ngweyi, Jackson Lehupa, Khanare Elias Monesa, Mpumzeni Ngxande, Thembinkosi Gwelani, Dumisani Mthinti, Paulina Masuhlo, Daluvuyo Bongo e Mafolisi Mabiya
Coordenação de Jornalismo: Nina Fideles Coordenação de Multimídia: José Bruno Lima Texto: Marcio Zonta Edição: Simone Freire e Daniela Stefano Artes: Gabi Lucena
Parceria: Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM)
Em memória de Adalberto Franklin, jornalista e historiador do Maranhão.