Júlia Rohden e Matheus Lobo
Na esquina do Brasil com o Paraguai, os 37 mil habitantes de Guaíra vivem entre a soja e o contrabando. O Mapa da Violência de 2016 aponta Guaíra como a cidade mais violenta do Paraná e a 52ª do Brasil. Ao lado, a cidade Terra Roxa vive uma realidade parecida, produzindo mais de 175 mil toneladas de soja e 265,8 mil toneladas de milho ao ano, segundo os resultados preliminares do Censo Agropecuário de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É a quarta maior produtora de milho do estado e a décima de soja.
Em Guaíra e Terra Roxa, há 14 aldeias ocupadas pelos Avá-Guarani, com uma população de cerca de duas mil pessoas, que reivindicam a demarcação da terra indígena Guasu Guavira. Eles retornam para áreas tradicionalmente habitadas pelos povos Guarani, que foram expulsos ao longo dos últimos séculos, com retomadas de terra a partir de 2004. O processo de demarcação foi iniciado em 2009 pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e, quase dez anos depois, os indígenas ainda aguardam a publicação dos estudos de demarcação.
Cláudio Barros é exemplo vivo da presença Guarani nas margens do Rio Paraná. Aos 102 anos, é liderança para todas as comunidades indígenas da região. Ele lembra do primeiro contato que teve com os brancos, aos 15 anos, e do trabalho ao qual foi submetido pela Companhia Mate Larangeira, grande empresa de erva-mate que até hoje batiza o nome da principal rua no centro de Guaíra.
O ancião vive em uma casa pequena em uma aldeia a poucos metros da estrada e próximo ao centro de Guaíra, a Tekoha Porã. A esposa Vitória, que viu o primeiro branco aos oito anos, lembra como era a vida dos Guarani antigamente. “Nós morávamos no mato, aqui na beirada do [Rio] Paraná. Vivíamos em um lugar que tinha peixe, caça e, quando acabava, nós mudávamos para outro lugar. Nós plantávamos mandioca, batata, milho. E era assim que vivíamos”, conta em um português que se mistura à sua língua materna guarani.
“Paraguaios e invasores”
No entanto, há quem duvide que os Avá-Guarani são realmente indígenas. Em Guaíra e Terra Roxa, circula a ideia de que os indígenas seriam paraguaios que cruzaram a fronteira para se aproveitar do Estado brasileiro e ganhar terras sem precisar trabalhar. “Não acredito que esse povo vai voltar para onde eles vieram. O Paraguai cortou seus benefícios sociais, o Brasil permanece. Então aqui pelo menos eles ganham a cesta básica e bolsa família”, diz o secretário de Segurança Pública de Guaíra, Edson Manoel Auler. Ao longo de pouco mais de uma hora de entrevista, ele insiste que há uma armação entre a Funai e ONGs internacionais para manipular paraguaios e trazê-los ao Brasil como indígenas.
Enquanto os estudos de demarcação da Funai não são divulgados, cresce o medo que as cidades sejam totalmente demarcadas. Até os comerciantes do centro da cidade temem que suas lojas virem território indígena. “Guaíra ficaria somente com acesso para o rio, o restante da cidade seria cercado por indígena”, afirma o secretário de Segurança Pública. A desinformação em relação ao processo de demarcação aumenta o eco do discurso anti-indígena.
Guaíra e Terra Roxa são municípios paranaenses vizinhos ao estado do Mato Grosso do Sul, marcado pelo massacre dos povos indígenas por latifundiários e milícias armadas. Diferente das propriedades sul-mato-grossenses, nos dois municípios do Paraná, grande parte das terras pertencem a pequenos proprietários, com títulos emitidos pelo Estado no processo de colonização a partir da década de 1940, após um histórico de recorrentes expulsões dos Guarani. De acordo com Rita de Cássia Ribeiro, técnica do Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), atualmente, 84% dos produtores de Guaíra se enquadram como pequenos agricultores.
A perseguição aos indígenas foi acirrada em 2013, com a fundação da Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip) que une proprietários rurais em campanhas contra a atuação da Funai e os povos indígenas do oeste do Paraná, classificados constantemente como “invasores” ou “paraguaios”. O grupo foi criado no mesmo ano em que a Funai abriu um escritório na cidade e em um contexto nacional de forte atuação da bancada ruralista.
Acuados pela cidade
Com sede na principal avenida de Guaíra, a Ongdip estimula e divulga discursos e atitudes violentas contra os indígenas. Além de promover debates e manifestações, a Ongdip tem uma página no Facebook com imagens e textos que incitavam os moradores da região a agir contra novas retomadas indígenas em Guaíra e Terra Roxa, convocando a população a ir até o local e expulsar os indígenas. De acordo com o Relatório sobre Violações de Direitos Humanos contra os Avá Guarani do Oeste do Paraná, lançado em 2017 pela Comissão Guarani Yvyrupa, ao menos três ocupações (em 2013, 2014 e 2016) foram impedidas pela movimentação de agricultores incitada pela Ongdip. Além de novas retomadas, eles também já impediram que cestas básicas e materiais de construção chegassem às aldeias.
O cacique Ilson Soares, da Tekoha Y’Hovy, conta que quando os indígenas protestam por falta de escolas, por exemplo, os proprietários rurais se reúnem rapidamente. “Eles têm carro, são fazendeiros de Guaíra, de Terra Roxa, de Marechal Rondon, do Mato Grosso do Sul, vêm aqui dizer que a gente não tem direito porque somos paraguaios”, relata. Ele também destaca as ameaças dos fazendeiros em “fazer justiça com as próprias mãos” e uma postura apática da polícia.
A página da Ongdip é alimentada por publicações cujos argumentos coincidem com os discursos da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que enxergam os indígenas como impostores, manipulados por interesses internacionais e freando o agronegócio. O deputado federal Sérgio Souza (MDB), por exemplo, aparece em diversas postagens falando sobre a questão indígena local. Em um deles, Souza afirma que “está acontecendo uma invasão de propriedades rurais por indigenistas ou por muitos que se dizem indigenistas [sic] e são paraguaios que estão vindo ao Brasil, em número de milhares, para buscar aqui assistência social, saúde, pegar terras dos produtores rurais altamente produtivas e para receber bolsa família”.
Na rede social da Ongdip, ainda era possível encontrar comentários como: “mete bala nesses podres”, “esses ‘índios’ usam perucas de festa à fantasia!!! Pensa em um grupo de índios bem fajutos” e “Vamos ensinar nossos cachorros a comer índio em vez de ração, um a cada dois dias já está bom”. Após ação do MPF, a Justiça determinou, em audiência de conciliação de 29 de maio deste ano, que a Ongdip modere os comentários e fixe no topo da página do Facebook e do site um aviso a seus contatos. “As opiniões da Ongdip não devem ser interpretadas como discriminação ou preconceito étnico contra índios. Comentários discriminatórios ou preconceituosos serão moderados e poderão ser excluídos, ficando o autor do comentário responsável nos termos da Lei.” O MPF chegou a pedir indenização de R$ 200 mil pelo dano moral coletivo causado pelas publicações discriminatórias, mas a multa foi retirada após a conciliação.
A campanha contra demarcação começou em 2012. “Colocaram faixas nas entradas das cidades, no comércio e adesivos nos carros que diziam ‘invasão indígena não combina com ordem e progresso’, ou ‘o Brasil acaba com a Funai ou a Funai acaba com o Brasil’. Isso fez a população se revoltar. Os políticos falam na rádio, no jornal, na internet, dizem que Guaíra vai se tornar terra indígena, que os moradores vão ser expulsos de suas casas. A partir daí a situação começou a ficar bastante complicada e até agora continua assim”, relata o cacique Ilson Soares.
A procuradora Hayssa Medeiros Jardim, do Ministério Público Federal do Paraná (MPF/PR), conta que os integrantes de um Grupo Técnico da Funai, responsável por fazer os estudos de identificação e delimitação da terra indígena, foram escoltados pelas polícias Militar e Civil porque foram hostilizados. Ela também ressalta que o coordenador da Funai em Guaíra precisou sair do município por receber ameaças. A reportagem tentou contato com o servidor, mas não obteve resposta.
Os indígenas dizem que alguns comerciantes se negam a vender produtos e, quando vão para a cidade, frequentemente, são ofendidos. Além disso, há relatos de tentativas de atropelamentos e de ameaças de morte a lideranças. A violência chegou ao ponto de, em 2013, uma adolescente indígena, que era estagiária da Funai, ser sequestrada, abusada sexualmente e agredida. Foi liberada depois de três horas com um recado: “fala para a Funai que a gente vai acabar com eles”.
As comunidades estão cercadas por plantações de milho e soja, sem acesso à água potável, à educação, confinadas a pequenos espaços. “A situação nunca esteve boa, já esteve pior e pode ser que piore. Existe a luta local, do município, sindicato [rural], câmara e prefeitura lutando contra a demarcação, contra nossa permanência. Além disso, tem uma luta política muito maior enquanto uma nação indígena, onde tem uma bancada lutando para exterminar os povos indígenas”, avalia o cacique Ilson Soares.
Séculos de violência
Hoje, na região do oeste paranaense, há apenas três reservas guaranis reconhecidas pelo governo. A primeira, criada pela Itaipu e delimitada pela Funai em 1982, é Oco’y, em São Miguel do Iguaçu, com 251 hectares e dentro de uma Área de Proteção Permanente (APP) do lago da Itaipu. Em Diamante d’Oeste foram criadas outras duas reservas, Tekoha Añetete e Tekoha Itamarã, em terras adquiridas pela Itaipu, em 1994 e em 2006.
A chegada de europeus ao continente americano provocou a morte e dispersão de milhares de indígenas. “Tem um grupo guarani que se logra a salvo da conquista e a salvo das reduções jesuíticas nas florestas paraguaias, argentinas e brasileiras. Vão se lograr salvos até a década de 1860, quando vem a guerra do Paraguai”, expõe o historiador e indigenista Paulo Porto, coordenador do Observatório Social das Terras Indígenas do oeste do Paraná e do portal Oguata Reguã.
O historiador afirma que a guerra de Brasil, Uruguai e Argentina contra o Paraguai devastou as áreas tradicionais indígenas. “Terminado a guerra, esses territórios Guarani vão ser transformados em fazendas ligados ao capital inglês, ao capital financeiro. Ou seja, aquele último recôndito passa a ser devastado”, explica.
O cacique Ilson Soares explica que os Guarani não enfrentaram os brancos diretamente, como outras etnias. “Nós nos afastamos dos brancos. Íamos para o Mato Grosso do Sul, Paraguai, Argentina. Mas o branco começou a chegar lá também. Voltamos pra cá, mas não tinha mais mato. Não temos mais pra onde ir e vamos permanecer aqui, lutar por essa terra que infelizmente já perdemos no passado e não queremos perder de novo”, conta.
O relatório Violações dos direitos humanos e territoriais dos Guarani no Oeste do Paraná (1946-1988): Subsídios para a Comissão Nacional da Verdade, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), mostra que já no início do século XX, a Companhia Mate Larangeira começou a explorar a região de Guaíra e Terra Roxa para a produção de erva-mate, submetendo indígenas a trabalho forçado. A Companhia fundou a cidade de Guaíra, por onde escoava sacos de erva e toras de madeira que eram extraídas na região e também no Mato Grosso do Sul. De acordo com o relatório, a Cia Mate Laranjeira chegou a ter 5 milhões de hectares de terra em 1895, e teve o monopólio de exploração durante o Império até a República.
A partir de 1940, posseiros expandem a ocupação para o oeste e o governo do Paraná concede títulos de terras devolutas (áreas convertidas ao patrimônio da União, com a proclamação da República) para empresas colonizadoras, ignorando a ilegalidade de transferir terras fronteiriças e com presença indígena para terceiros.
A construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu foi um novo capítulo da expulsão dos indígenas, nas décadas de 1970 e 1980. O alagamento de áreas no entorno do Rio Paraná para a construção da usina atingiu 16 municípios, entre eles Guaíra e Terra Roxa.
“Os Guarani são um povo muito religioso, entendem que o fim do mundo termina com água, então muitos velhos guaranis acharam que o mundo estava acabando [com os alagamentos provocados pela Itaipu] e foram para o Paraguai, que é o umbigo do mundo, como eles falam”, diz o historiador Paulo Porto. Ele afirma que muitos dos índios que tiveram suas tekohas inundadas pela Itaipu começaram aos poucos a voltar e reivindicar terras.
Os Avá-Guarani voltaram para as terras tradicionalmente ocupadas em Guaíra e Terra Roxa especialmente a partir dos anos 2000. Um dos técnicos da Funai que atuou na região disse à reportagem que quando a fundação abriu o escritório em Guaíra, em 2012, ouvia dos proprietários frases de alívio, entendendo que a Funai iria “levar os índios para outro lugar”. Ele conta que a inauguração da Justiça Federal em Guaíra, em 2010, fez com que houvesse uma judicialização das tentativas de expulsão dos indígenas (ações de reintegração de posse), que antes era feita com violência, por fora da lei.
Acusados de invasores, os indígenas garantem que vão continuar reivindicando a demarcação das terras. “A gente vai pra onde? Querem jogar a gente pra margem da BR, para debaixo da ponte”, afirma Ilson Soares. Cacique da Tekoha Yvyraty Porã, Raul Medina concorda que não adianta ir para outro lugar: “precisamos continuar existindo aqui, não adianta correr, em toda a parte os brancos estão nos discriminando”.
Leia as cinco reportagens do especial Avá-Guarani: Território em disputa
Este especial foi produzido com apoio do Edital de Jornalismo Investigativo e Direitos Humanos, do Fundo Brasil