Júlia Rohden e Matheus Lobo
Encurralados pela produção de soja e milho, as 14 retomadas de terra dos Avá-Guarani em Guaíra e Terra Roxa, no extremo oeste do Paraná, são expressões da resistência histórica dos indígenas no Brasil. Cerca de dois mil indígenas vivem em situação de pobreza, sem água limpa, saneamento básico e alimentação adequada. A falta de renda para comprar sementes e a aplicação de agrotóxico no entorno das aldeias impedem que as plantações se desenvolvam para alimentar as comunidades.
As aldeias são compostas por casas de madeira (algumas feitas com tábuas encontradas no lixo), por pequenas hortas e todas têm sua “casa de reza”, um espaço aberto com troncos de madeira sustentando um telhado de sapé. Em cada uma das aldeias há também uma escolinha construída pelos indígenas para o ensino da língua guarani. São construções simples, com chão de terra batida e lousas e cadeiras que receberam de doações. Apenas uma aldeia tem escola estadual de ensino fundamental, a Escola Indígena Mbyja Porã, na Tekoha Marangatu.
A Tekoha Tatury é a mais recente e mais precária ocupação dos dois municípios. Ao lado da cidade de Guaíra, a aldeia é uma das sete sem água encanada. José Carlos, cacique, conta que perdeu o filho pequeno por uma dor de barriga que não acabava. Outra morte foi do rezador Celestino, que aos 88 anos era importante liderança religiosa, e foi picado por uma cobra enquanto ia buscar água no rio. Seu filho relata que ligaram para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), mas ninguém atendia o telefone e o ancião não resistiu.
O atendimento é feito pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que integra o Sistema Único de Saúde (SUS). Os indígenas falam, porém, que muitas vezes os agentes da Sesai não chegam até as aldeias por falta de gasolina. Precisam então recorrer a taxistas para levar os pacientes para um atendimento médico, o que não é fácil, considerando que várias aldeias ficam afastadas dos centros urbanos. O cacique da Tekoha Y’Hovy, Ilson Soares, fala que umas das dificuldades é ter todos os documentos exigidos pelo posto de saúde.
Para Luciano Palagano, integrante do Centro Regional de Direitos Humanos de Cascavel, o poder público assume uma postura de descaso. “O argumento do Estado para não disponibilizar estrutura básica de saúde, educação, moradia é de que a terra não está demarcada. Mas o próprio Estado não demarca a terra e, ao não demarcar, se exime da responsabilidade”, avalia.
A procuradora do Ministério Público Federal (MPF) Hayssa Medeiros Jardim concorda que a falta de demarcação das terras não deveria ser um impedimento para o Estado prestar os serviços necessários. “Entramos com várias ações para estruturar alimentação, saneamento, energia elétrica, aparelhos de saúde”, conta. Ela diz que algumas já tem sentença favorável e outras ainda estão tramitando.
Por outro lado, o secretário de Segurança Pública de Guaíra, Edson Manoel Auler, tem um discurso comum na cidade: os Avá-Guarani são paraguaios que cruzaram a fronteira para invadir terras e se aproveitar do Estado brasileiro. “Quando eles [indígenas] se apresentam na Assistência Social, já com documentos, se torna uma obrigação do município prestar todos os serviços sociais para esse povo. Isso gera um problema gravíssimo na segurança pública, na educação, que tem que fornecer escola para esse povo; um problema para a previdência e outros problemas sociais”, afirma.
Barreiras para o estudo
O sustento de muitas famílias Avá-Guarani vem de programas do governo federal, principalmente Bolsa Família. Para ter acesso ao benefício do programa é necessário comprovar frequência escolar, mas na região das 14 aldeias, apenas uma tem escola indígena estadual.
As crianças indígenas frequentam as escolas da cidade, onde costumam ser hostilizadas. No contraturno, elas participam de aulas nas escolinhas das aldeias, ministradas por professores indígenas que normalmente moram naquela comunidade.
Para as crianças da Tekoha Guarani, a intimidação começa antes de chegar à escola, no trajeto até o ponto de ônibus. Os adultos da aldeia contam que o caseiro da fazendo próxima solta os cachorros em cima das crianças.
Sentadas nas cadeiras das escolas, o desafio é lidar com os comentários e atitudes racistas dos colegas. A promotora do Ministério Público do Paraná (MPPR) Amanda Ribeiro dos Santos afirma que é perceptível a dificuldade da criança e adolescente indígena se integrar nas escolas da área urbana. “Não conseguem estabelecer vínculos com outras crianças, até por causa dessa discussão fundiária que despertou um ódio e um preconceito muito grande, baseado muitas vezes na falta de informação”, avalia.
A Escola Indígena Mbyja Porã, única da região, levou para a Tekoha Marangatu educação, mas também outras políticas públicas, como a melhoria da estrada, vinda de energia elétrica e água. Além disso, a escola gerou empregos para ao menos 13 indígenas, em um contexto no qual um Guarani dificilmente consegue trabalho. As crianças são alfabetizadas em guarani e, depois, em português.
Remando contra a maré, Gilberto Benitez é um dos exemplos de Guarani que chegaram à universidade. “A gente tem que pensar em ocupar os espaços políticos, como a universidade”. Além de estudante, Benitez é professor na escolinha improvisada da Pohã-Renda e conhece o preconceito que seus alunos são submetidos quando chegam nas escolas municipais. “No ensino fundamental a gente já sofre preconceito e muitas pessoas não conseguem terminar o ensino médio”.
Água que acaba
A água potável é outra reivindicação comum nas retomadas guaranis de Guaíra e Terra Roxa. Sete aldeias (Pohã Renda, Tajy Poty, Nhemboete, Yvyraty Porã, Yvy Porã, Tatury e Guarani) dispõem de caixas d’água que são abastecidas por caminhões pipa por causa de uma ação do MPF e de convênio entre a Sesai e a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar).
Apesar disso, algumas aldeias têm as caixas d’água furadas. Os indígenas também relatam que a quantidade de água fornecida pelo Estado não é suficiente para atender a toda a aldeia e causa diarréia e vômitos nas crianças.
Leocíneo Gonçalves mora na Tekoha Tajy Poty, no município de Terra Roxa, que fica ao lado de uma rodovia. Ele conta que a caixa d’água está furada há seis meses. O mesmo acontece na Tekoha Tatury, em Guaíra, onde o cacique José Carlos Bogari diz que falta água há dois meses. “Nós passamos dificuldade aqui. Não tem água, não tem estrada e a cesta básica é pouco”, denuncia.
Nesse contexto, os indígenas buscam água nos arredores das aldeias que muitas vezes estão contaminadas por agrotóxicos usados nas plantações ao redor.
Veneno que se espalha
Quando Laucídio Medina acorda, se levanta e vê apenas soja e milho. Ele mora na Tekoha Yvyraty Porã, onde poucos pés de mandioca cultivados na pequena faixa de terra ocupada pelos indígenas contrasta com o modelo de agronegócio que os cerca: hectares e hectares de commodities que crescem a base de agrotóxicos.
Sem o território demarcado, os Avá-Guarani de Guaíra e Terra Roxa tentam cultivar plantas medicinais e alimentos. Mas o espaço de terra, reduzido e contaminado por agrotóxico, torna o plantio praticamente impossível. Um ou outro pé de mandioca ou de banana resistem.
A geógrafa Teresa Paris, do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), ressalta que há um forte contraste entre as terras ocupadas por indígenas e aquelas destinadas ao agronegócio. “Eles estão lá recuperando um pedacinho de terra para viver minimamente, plantando uma variedade de coisas. Eles têm muito isso de buscar [sementes] em outras aldeias, buscar com os parentes as espécies que não têm lá, em contraposição ao entorno todo que é aquele monte de veneno, aquela monocultura que detona tudo”, diz.
Os indígenas são diretamente impactados pelo uso de agrotóxico nas propriedades vizinhas. Muitas crianças ficam doentes. “A cada 15 dias os fazendeiros passam veneno e, quando chove, vem tudo para cá e dá doença”, relata o jovem Laucídio Medina.
Na aldeia Tekoha Araguaju, em Terra Roxa, os indígenas contam que houve aplicação de agrotóxico com uso de aviões nas plantações ao redor. A legislação brasileira, no entanto, estabelece que a pulverização aérea de agrotóxicos deve ocorrer a 500 metros de povoações, cidades, bairros e áreas de mananciais de captação de água para abastecimento. No Relatório sobre Violações de Direitos Humanos contra os Avá-Guarani do Oeste do Paraná, uma liderança detalha que a ação aconteceu em 2013, com o avião voando baixo. Causou ânsia de vômito, dor de barriga e dor de cabeça, além da morte de animais como galinhas e patos.
Neste contexto, parte da alimentação dos indígenas vêm de cestas básicas que, desde 2017, se tornaram uma obrigação do município, a partir de uma ação movida pelo MPF. Os indígenas relatam que as cestas não vêm com a regularidade que deveria e o número é insuficiente para a alimentação de todas as famílias.
Leia as cinco reportagens do especial Avá-Guarani: Território em disputa
Este especial foi produzido com apoio do Edital de Jornalismo Investigativo e Direitos Humanos, do Fundo Brasil