Júlia Rohden e Matheus Lobo
A Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), conhecida como bancada ruralista, vem ganhando força nos últimos tempos. Os indígenas são diretamente afetados por esse bloco político que conta com 228 deputados e 27 senadores. No oeste do Paraná, os Avá-Guarani das 14 aldeias de Guaíra e Terra Roxa, são alvos do discurso da bancada ruralista, reproduzido por grande parte da população local que os enxerga como “paraguaios” e “invasores”.
O relatório do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) aponta que as eleições de 2014 formaram o Congresso Nacional mais conservador desde a redemocratização, em 1985. O Diap atribui o conservadorismo ao alto número de parlamentares ruralistas, religiosos, militares e policiais. O estudo ainda aponta que nenhum candidato autodeclarado indígena foi eleito para a Câmara dos Deputados.
Outro levantamento, realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), revela que, no final de 2017, havia 33 proposições legislativas anti-indígena. Entre elas, 17 iniciativas buscam alterar os processos de demarcações e outras seis pretendem transferir ao Congresso Nacional a competência de demarcar terra indígena (hoje cabe ao executivo federal).
O secretário-executivo do CIMI Cleber Buzzato avalia que este Congresso conservador influencia na falta de demarcação de terras indígenas. Outro impacto, para Buzzato, é o aumento de preconceito e de ações violentas contra os povos indígenas. “Essas violências acabam acontecendo também em função dos discursos recorrentes que são realizados por parte de membros da bancada ruralista nas diferentes regiões do país, com discursos contrários aos povos indígenas, aos seus direitos, enfim, que esses parlamentares fazem em uma perspectiva de tentar legitimar aquelas ações e proposições anti-indígenas que eles defendem no Congresso Nacional”, afirma.
Gilberto Benitez, morador da Tekoha Pohã Renda, em Terra Roxa, conta que os Avá-Guarani são alvos constantes de ofensas verbais e violências, como tentativas de atropelamento e ameaças de morte. “Aumentou o preconceito e as ameaças. A maioria dos grandes produtores envolvem a sociedade inteira contra os povos indígenas. De jeito nenhum querem que a gente fique nas terras”, denuncia.
Na avaliação de Buzzato, do CIMI, o discurso que toma conta da população de Guaíra e Terra Roxa não é caso isolado, mas parte de uma estratégia nacional da bancada ruralista de incitar o ódio contra os indígenas. “Evidentemente não é só da bancada ruralista, eles acabam sendo o sujeito político que manifesta, mas por trás há interesses econômicos bastante concretos”, afirma o secretário do CIMI, lembrando das grandes empresas produtores de commodities agrícolas. “No fundo também tem interesses de grandes multinacionais que lucram com o modelo de produção do agronegócio, seja com a venda de sementes transgênicas, venda de veneno ou com a comercialização das commodities”, opina.
O historiador e indigenista Paulo Porto, que apoia os Avá-Guarani do oeste do Paraná, concorda que o agronegócio é um entrave para a demarcação. “Quando demarca uma terra indígena essa terra não vai produzir para o mercado. É isso o que está em jogo, é travar a lógica do capital”, opina. Buzzato lembra que a ocupação do território pelos povos indígenas é voltada para produção em pequena escala, para subsistência e respeitando o meio ambiente. “É bem diferente da forma de uso do agronegócio, que é produção em larga escala, monocultura, com uso intensivo de agrotóxicos. Então acaba [a demarcação] sendo uma espécie de barreira, de limitador, dos interesses dessas grandes corporações”, diz.
Agenda anti-indígena
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000 é um exemplo da investida da bancada ruralista contra os povos indígenas. De autoria do deputado federal Osmar Serraglio (MDB), a PEC pretende incluir entre as competências exclusivas do Congresso Nacional a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas. A proposta precisa ser votada no plenário da Câmara, mas sua tramitação está suspensa, assim como de todas as PECs, enquanto durar a intervenção militar no Rio de Janeiro. Isso porque a Carta não pode ser alterada na vigência de intervenção federal, conforme seu artigo 60.
A bancada ruralista também investe na tese do Marco Temporal, defendendo que os indígenas teriam direito apenas às terras que ocupavam em 1988, ano de promulgação da Constituição. A tese ignora os processos de expulsão dos indígenas de seus territórios tradicionais, realizados há séculos por fazendeiros, milícias e por agentes do próprio Estado.
A demarcação da terra Guasu Guavira, reivindicada pelos Avá-Guarani que ocupam as 14 aldeias em Guaíra e Terra Roxa, é um exemplo de território que seria anulado caso o Marco Temporal fosse vigente. Os indígenas do oeste do Paraná passaram por diversos processos de expulsão de seu território, inclusive ao longo do século XX, com a ação de empresas colonizadoras a partir de 1940 e os alagamentos provocados pela construção da Usina Itaipu, em 1982.
“Existe uma articulação política feita pelos fazendeiros com os políticos que lutam pelo marco temporal, pela PEC 215”, afirma Ilson Soares, cacique da Tekoha Y’Hovy, que fica próxima ao centro do município de Guaíra. Ele rebate outro argumento comum dos parlamentares ruralistas, de que já haveria terras demarcadas o suficiente. “Os deputados têm grandes terras, grandes fazendas, mas para eles não falam que é muita terra para pouco deputado”, ironiza.
Outro elemento significativo que revela o retrocesso nas pautas indígenas é o corte no orçamento da Funai. De acordo com levantamento da Agência Pública, entre 2014 e 2017, houve um corte de 65% na verba de proteção, demarcação e fiscalização. O órgão também diminuiu 40% no orçamento, entre o mesmo período.
As mudanças recentes no cargo da presidência da Funai escancaram o poder da bancada ruralista. O atual presidente Wallace Moreira Bastos foi indicado pelos ruralistas e criticado por indígenas e indigenistas por não ter em sua trajetória nenhum vínculo à questão indígena. Bastos é administrador e concursado da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Ele substituiu o general Franklimberg Ribeiro de Freitas, que foi exonerado do cargo em abril. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, a exoneração veio a partir de uma carta com a assinatura de cerca de 40 deputados da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) entregue ao presidente Michel Temer. A FPA, no entanto, afirmou em nota que a saída do presidente foi uma demanda “de populações indígenas” e que entregou um ofício a Temer com assinatura de mais de 170 lideranças indígenas.
Questionada pela reportagem, a Funai declarou que “as mudanças de gestão não afetam os processos demarcatórios, pois estes são procedimentos técnicos que atendem a ordens judiciais executados por áreas técnicas, não havendo interferência”.
Articulações políticas no Paraná
O deputado federal Sérgio Souza (MDB) é um dos 20 deputados eleitos no Paraná que integram a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA). Souza é figura de destaque da FPA na região Sul e frequentemente se posiciona contra a demarcação de terras para os Avá-Guarani do oeste paranaense, na fronteira com Mato Grosso do Sul e Paraguai.
Foi Souza que, em dezembro de 2017, convocou uma audiência pública da Comissão de Agricultura da Câmara, da qual era presidente, com o objetivo de debater os estudos de demarcação das terras indígenas no oeste do Paraná. Os prefeitos Heraldo Trento (DEM), de Guaíra, e Altair de Padua (PSC), de Terra Roxa, estiveram presentes. Trento afirmou se tratar de um caso de soberania nacional, alegando que indígenas do Paraguai e da Bolívia estariam participando das ocupações.
Para o deputado Sérgio Souza, “nunca teve índio” na região. Sua argumentação contra a demarcação segue a mesma linha dos outros parlamentares da bancada ruralista. Conforme escreveu Souza em carta a Michel Temer em 19 de dezembro, ONGs financiadas por estrangeiros estariam cooptando lideranças indígenas para enfraquecer o direito à propriedade. No documento, ele pede que Temer “adote as medidas administrativas cabíveis no sentido de intervir junto à Funai” para evitar o conflito iminente na região de fronteira do Paraná e Mato Grosso do Sul, onde estão localizados os municípios de Guaíra e Terra Roxa.
Nelson Padovani (PSC) também foi eleito deputado federal pelos paranaenses em 2014. A atuação de Padovani, assim como Souza, é marcada pelo discurso anti-indígena. Em 2013, ele chegou a afirmar, em sessão, enquanto defendia a PEC 215/2000, que os Guarani são estrangeiros porque não sabem falar português. “Até índio que não sabe falar português, índio importado do Paraguai, agora também quer as nossas terras. Como se não bastassem os problemas, que já temos com os daqui, agora temos que enfrentar invasões de estrangeiros em nosso território. Veja a que ponto chegamos”, afirmou.
Entidades reúnem população contra demarcação
Oito dias antes da Audiência Pública convocada pela Comissão de Agricultura da Câmara, o centro de Guaíra foi palco de uma manifestação contra a Funai e os indígenas. Promovido pela Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip) e pelo Sindicato Rural de Guaíra, o ato reuniu moradores de municípios vizinhos. Segundo a Ongdip, entidade que reúne produtores rurais da região para debates e manifestações contra os direitos indígenas, havia seis mil pessoas.
A procuradora do Ministério Público Federal (MPF) Hayssa Medeiros Jardim conta que foi um protesto marcado pela desinformação. “Falavam que seria demarcado todo o oeste do Paraná”, lembra. “Essa desinformação leva ao absurdo. Vieram caminhões entregar kits-moradia aos indígenas – apenas para substituir as taperas em que eles moram hoje – que são materiais móveis que podem ser retirados e levados para outro local. E algumas pessoas se uniram e impediram que esses caminhões sequer chegassem ao município, alegando que a Funai estimula novas invasões. E iam colocar fogo nos caminhões”, relata a procuradora.
Os prefeitos de Guaíra e Terra Roxa, Heraldo Trento (DEM) e Altair de Padua (PSC), foram à manifestação. Também estava presente o assessor do deputado estadual Elio Rusch (DEM). No mesmo dia 6 de dezembro, Rusch fez um discurso na tribuna da Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) no qual afirmou que "se existe uma coisa de direito legítimo e sagrado é o direito à propriedade”, denunciando uma suposta “invasão” indígenas às terras. Rusch qualificou como “preocupante e revoltante” a chegada dos caminhões com kits-moradia.
O presidente da Ongdip, Roberto Weber, reforça o coro da bancada ruralista em entrevistas e eventos públicos. Para a rádio A Voz do Campo, por exemplo, Weber reafirmou que os Avá-Guarani são “paraguaios que vieram invadir propriedade, com apoio da Funai, cobertura do Ministério Público Federal e da Justiça Federal”. Ele defende a tese do Marco Temporal e fala orgulhoso que desde o surgimento da Ongdip os indígenas não conseguiram “invadir” mais nenhuma terra.
Outro argumento contra a demarcação é de que, seguindo o critério constitucional das terras tradicionalmente ocupadas, o Brasil inteiro deveria ser demarcado, já que o território era ocupado pelos povos indígenas antes da chegada dos colonizadores. “Eles falam que vão ter que devolver Copacabana e a Avenida Paulista para os indígenas. Mas não é isso o que a gente quer. A gente não quer Copacabana. Vai fazer o quê com Copacabana? A gente quer o espaço onde possa viver e continuar a nossa existência”, rebate o cacique Ilson Soares. Para manter a cultura guarani, ele considera necessária a demarcação. “A luta pela continuidade da nossa resistência é muito grande, é uma luta política grande - porque não só os fazendeiros estão lutando contra nós, mas os políticos, a bancada ruralista e o Congresso Nacional vem lutando para exterminar os povos indígenas”, avalia.
O presidente da Ongdip, Roberto Weber, do Sindicato Rural de Guaíra, Silvanir Rosset, foram contatados por telefone mas não quiseram dar entrevista. A reportagem também solicitou entrevistas com os prefeitos de Guaíra, Heraldo Trento (DEM), e de Terra Roxa, Altair de Padua (PSC); com os deputados federais Sérgio Souza (MDB) e Nelson Padovani (PSC); e com o deputado estadual Elio Rusch (DEM). Não houve resposta de nenhum dos políticos até a publicação desta reportagem.
Leia as cinco reportagens do especial Avá-Guarani: Território em disputa
Este especial foi produzido com apoio do Edital de Jornalismo Investigativo e Direitos Humanos, do Fundo Brasil