ESPORTE E PRECONCEITO

Brasil: o país do futebol... masculino

Em 1941, decreto lei proibiu a prática do futebol feminino no Brasil por quase 40 anos, até 1979

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Apesar da falta de profissionalização, dedicação é diária
Apesar da falta de profissionalização, dedicação é diária - Fotos: Fabiana Reinholz

“Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza.” As palavras são do artigo 54 do decreto-lei número 3.199, assinado em 1941, que proibiu a prática do futebol feminino por quase 40 anos, até 1979. 

Para o governo da época, o esporte era considerado violento, e a natureza da mulher, frágil. Hoje, conhecemos Marta: a primeira pessoa a ser eleita por cinco vezes consecutivas a melhor futebolista do mundo. Frágeis, elas já provaram que não são. Futebol, elas já mostraram que jogam. Por que não ouvimos falar sobre as jogadoras profissionais?

Campo molhado não é impedimento para o aquecimento

Aos sete anos, a menina alegretense começou a jogar bola com seus irmãos e primos. Aos dezesseis, saiu da casa dos pais para viver o sonho de se tornar uma atleta profissional. Elisandra Madeira Guerra, carinhosamente conhecida como Taba, hoje é meio campista do Grêmio, em Porto Alegre, e só no segundo semestre desse ano começou a viver exclusivamente da profissão. “Anteriormente, mais da metade das jogadoras se dividiam entre treinamento e trabalho, isso prejudicava bastante o desempenho, porque não é fácil tu ter que trabalhar o dia todo e à noite ter que viver uma rotina de atleta, competir, estar em alto nível”, comenta.

A paixão de Georgia Balardin, 22 anos, vem desde os 5. Ainda na infância entrou nas categorias de base do Internacional, de onde saiu aos 14 para jogar na Associação Carlos Barbosa de Futsal. Com um convite da ex-jogadora e gerente de futebol feminino do Inter Duda Luizelli, retornou ao clube no ano passado. Para Georgia, a principal dificuldade que as esportistas enfrentam é a falta de patrocínio. “É difícil, porque se não tem o público, não tem a mídia. Se não tem a mídia, não tem o patrocinador, e se não tem patrocinador a gente também não cresce”, desabafa. A atleta acredita que o novo regulamento da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) possibilitou maior visibilidade à modalidade.
 
Profissionalização

Apesar da lei da Conmebol ter facilitado a criação de departamentos femininos nos clubes, as atletas ainda enfrentam a falta de profissionalização. Das dez equipes inscritas no Gauchão 2018, apenas a do Internacional assina a carteira de somente 9 das 27 jogadoras. Segundo a Federação Gaúcha de Futebol (FGF), o Grêmio pretende regulamentar 10 das 21. Profissionalizar é o clube assinar carteira e contrato de trabalho, além de oferecer condições e estrutura para que as mulheres possam fazer desse esporte a sua profissão. “Essas meninas têm sangue nas veias, vontade de dar certo, mas não depende delas. Depende do clube realmente investir”, afirma Carlos Alberto de Souza (Neco), presidente da Associação Gaúcha de Futebol Feminino (AGFF). Para ele, a profissionalização não pode valer só para três, quatro, e às outras não.

Silvana Goellner, pesquisadora referência nos estudos sobre a inserção das mulheres nos esportes, acredita que as federações esportivas deveriam investir em novos campeonatos para que tenhamos maior circulação de jogadoras. “Elas jogam por amor, elas são resilientes, elas são persistentes, elas perseveram, em que pese toda a diversidade de condições com as quais elas encontram o futebol de mulheres no Brasil. É muito diferente do que ter carteira assinada, plano de saúde, férias, aposentadoria, ou seja, vínculos duradouros com as equipes”, afirma Silvana. 

Para o presidente da FGF, Francisco Noveletto, quem deveria financiar as competições são o Ministério do Esporte e a Secretaria de Esporte do Estado. De acordo com ele, a média dos salários das jogadoras no RS não chega a 100 reais. Grêmio e Inter representam 1% da realidade do Estado e oferecem uma média de 3 mil reais.

Falta de visibilidade 

Elas não aparecem na mídia nem tem seus passes vendidos por milhares de dólares. Para as jogadoras, a modalidade ainda não chegou ao patamar da masculina por conta da falta de visibilidade. “A gente não tem a mesma mídia, não tem a mesma transparência. Para muitos, futebol feminino não é muito atrativo e por conta disso não aparece o apoio necessário”, aponta Taba.

Apenas 3% do noticiário esportivo é voltado para a cobertura de atletas e competições femininas segundo pesquisa da Women’s Sports Foundation. No Brasil, a organização de mídia Gênero e Número analisou pouco mais de 24h da programação esportiva e o levantamento apontou que apenas 12% desse tempo, um total de 2 horas e 55 minutos, foi dedicado às atletas mulheres.

Todas as dificuldades que as meninas enfrentam não diminuem sua vontade jogar. Cabe a nós, cidadãos, continuar questionando e cobrando que elas apareçam nos noticiários, que seus jogos sejam transmitidos, que seu futebol seja devidamente reconhecido.

Time feminino é exigência da Conmebol

O Regulamento de Licença de Clubes 2018 da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) exige que os times, para jogarem as copas Libertadores e Sul-Americana, tenham uma equipe e pelo menos uma categoria de juventude femininas. De acordo com o documento, o clube deve fornecer suporte técnico, equipamentos e infraestrutura necessários, além de participar de competições nacionais e/ou regionais autorizadas pela respectiva Associação Membro.

O regulamento passa a valer a partir de 2019 e atualmente apenas oito clubes dos vinte que integram o campeonato brasileiro já se encontram representados por mulheres na categoria adulta: América-MG, Corinthians, Flamengo, Grêmio, Internacional, Santos, Sport e Vitória.

Campeonatos

No Rio Grande do Sul, ainda não existem campeonatos femininos totalmente regulamentados. O Campeonato Gaúcho, conhecido como Gauchão, está sendo bancado integralmente pela Federação Gaúcha de Futebol (FGF) pela primeira vez e ainda é classificado como amador. “No pé da lei, aí não tem campeonato. Eu aceitei fazer o campeonato só com ficha, sem ter registro na CBF. Porque qualquer campeonato tem que ter registro da CBF, daí encarece. Daí tem que ser profissionalizado. Como eu vou exigir isso dos dez clubes do interior? Que as coitadinhas ficam tirando dinheiro do bolso pra comprar remedinho”, comenta Francisco Noveletto, presidente da FGF. 


Este conteúdo foi originalmente publicado na versão impressa (Edição 5) do Brasil de Fato RS. Confira a edição completa.

Edição: Marcelo Ferreira