Dezenas de pesquisadores já se debruçaram sobre as versões da Guerra dos Farrapos. O historiador e ex-diretor técnico do extinto Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), Luiz Claudio Knierim, recorda que memória coletiva não é um espaço neutro, mas de discurso político. “Quando se esconde ou não se conta bem o Massacre de Porongos, por exemplo, temos uma razão ideológica, o enaltecimento da figura mítica do gaúcho.”
Foi “a maior infâmia já praticada no Rio Grande do Sul”, segundo o jornalista Juremir Machado da Silva, autor do livro “História Regional da Infâmia: o destino dos negros farrapos e outras iniquidades brasileiras”. Foi uma traição aos negros que guerreavam com a promessa de liberdade no final do conflito, já que a maioria dos farroupilhas não era abolicionista. “Um ou outro pode ter sido, mas a maioria esmagadora não foi. Não era uma bandeira da revolução. Bento Gonçalves, por exemplo, quando morreu tinha muitos escravos”, revela o autor.
Com a derrota dos rebelados em vista, o Império não aceitava a prometida libertação. Ao mesmo tempo, os farrapos anistiados não sabiam o que fazer com aqueles homens que deveriam ser devolvidos aos seus antigos patrões. A solução foi costurada no Massacre de Porongos, o último conflito da guerra, uma emboscada aos Lanceiros e Infantes Negros combinada entre David Canabarro e Duque de Caxias. No dia 14 de novembro de 1844, mais de 100 negros foram assassinados e os que sobreviveram foram enviados à corte brasileira.
“Foi um massacre! Não foi uma batalha em que as duas partes estavam posicionadas para combater. Foi um ataque surpresa, como era na maior parte do tempo dessa revolução de guerrilhas. Nesse caso, o acampamento foi atacado de surpresa ao amanhecer e essas pessoas estavam sem munição”, esclarece Juremir. As munições haviam sido retiradas pelo comandante Canabarro, mesmo com aviso da proximidade das tropas imperiais.
Resgate da importância do negro na formação do RS
“Nós, Lanceiros Negros Contemporâneos, somos negros que nos identificamos com o gauchismo, não necessariamente com o tradicionalismo”, diz o manifesto do Piquete Lanceiros Negros Contemporâneos, fundado em 2003, nos 160 anos do episódio de Porongos. “[...] queremos fazer parte desta história, nos reencontrar com o nosso passado e redescobrir os laços que nos ligam a essa cultura gauchesca que também nos pertence e que muito nos orgulha porque em muito contribuímos para a sua existência.” Este piquete se soma a outros que participam dos festejos gaúchos de setembro e buscam ressignificações. O grupo realiza uma cavalgada em pontos históricos de Porto Alegre, no dia 14 de novembro, marcando o início da Semana da Consciência Negra.
Knierim avalia como fundamental o entendimento dessa história para o combate ao racismo do estado. “As vezes, o gaúcho acha que é melhor que o restante dos brasileiros por causa desta história mal contada. Não olha os defeitos dos seus chamados heróis. Aí saem combatendo negros refugiados que chegam aqui, esquecendo que seus avós também foram imigrantes vindos de uma Europa que passava fome”, pondera.
Isso não quer dizer que não se possa celebrar a cultura gaúcha, como faz qualquer povo com seu folclore e identidade. Para Knierim, é importante “desvincular os festejos de celebração e costumes gauchescos do episódio histórico”. Na Guerra dos Farrapos, lembra Juremir, “houve de tudo. Teve banditismo, corrupção, traição, mas também momentos de bravura e heroísmo”.
Este conteúdo foi originalmente publicado na versão impressa (Edição 5) do Brasil de Fato RS. Confira a edição completa.
Edição: Ayrton Centeno