Emancipação das populações negras, solidariedade entre os países da África. São esses os valores que unem os 400 militantes, de 50 nacionalidades diferentes, que participam desde ontem da 3ª Conferência Pan African Today (Pan-africanismo Hoje, em português). O evento acontece em Winneba, Gana, e termina na próxima segunda-feira (24).
O termo pan-africanismo é utilizado desde o início do século 20, quando começou o processo de reorganização do continente após a colonização europeia na região.
Um dos principais líderes políticos a adotar a expressão foi Kwame Nkrumah, ex-presidente de Gana, que propunha unidade africana e solidariedade entre africanos e afrodescendentes em todo o mundo.
Para explicar os desafios que se impõem ao pan-africanismo no século 21, a reportagem do Brasil de Fato conversou com o professor Muryatan S. Barbosa, pós-doutor em História da África. Na entrevista abaixo, o pesquisador ressalta a importância do ideal de civilização africana como forma de superar o racismo e a herança da escravidão.
“A entrada dos estudantes negros na universidade, nos últimos quinze anos, é uma caixa de pandora, um elemento fundamental para transformar esse pensamento brasileiro”, afirma Muryatan. “O Brasil está em uma encruzilhada. Ele criou uma abertura e hoje tem que decidir se vai aprofundar essa abertura ou se vai voltar para a caverna, onde o Brasil sempre esteve”, completa.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: O que é o pan-africanismo e em que contexto histórico ele surge?
Muryatan Barbosa: O termo começou a ser utilizado no final do século 19 para se referir a uma luta dos africanos e dos afrodescendentes por uma vida mais digna, por uma luta comum por ideais de liberdade, de solidariedade da raça negra. Ficou consagrado no primeiro Congresso Pan-Africano de 1900, em Londres. A partir de então, vem sendo usado de formas diversas.
A partir da década de 1960, o termo foi muito relacionado às lutas anti-neocolonialistas, pelo fim das opressões dos povos africanos. Quais são as principais bandeiras e frentes de luta do pan-africanismo hoje?
Desde o fim do século 19, há algumas bandeiras, comuns como a ideia da liberdade. Lembrando que falamos da época do colonialismo na África. Então, é a ideia de libertação, de integração da África, de uma personalidade africana, uma civilização africana que tinha valores a contribuir para a humanidade, e a ideia da solidariedade. Esses quatro princípios sempre caminhavam junto com a luta pan-africanista.
Em 1945, ocorreu o Congresso mais importante até hoje: o Congresso pan-africano de Manchester. Nesse Congresso, várias correntes pan-africanistas se uniram em prol da defesa da descolonização da África. Então, a partir de 1945, o pan-africanismo ficou muito associado à luta pelas independências africanas.
Sobretudo, com o Kwame Nkrumah, há um tipo de luta que era pela unidade africana. Para além da independência nacional. O Nkrumah, que passou a ser o principal líder pan-africanista do pós guerra, em 1950-60, passou a defender que a descolonização deveria levar à unidade africana como um todo. Isso trouxe uma nova roupagem, um novo teor à luta pan-africanista.
Ocorreram várias disputas em torno de como se realizaria essa unidade. Todos os pan-africanistas, na época, defendiam essa unidade, mas a questão era como ela iria ocorrer. O Nkrumah defendia que isso deveria ocorrer de forma rápida, outros defendiam que isso ocorreria gradativamente. Então, houve uma ruptura dentro dessa tradição pan-africanista, e a formação da organização da unidade africana foi uma forma de tentar unir novamente as diversas correntes.
Mas, a bem da verdade, a corrente que defendia o gradualismo, tornou-se mais importante. Já nas décadas de 1970-80, período pós-colonial da África, portanto, houve o ressurgimento de algumas tendência mais associadas ao Garveyismo, conforme adotado pelo afrocentrismo, com a ideia de raça dentro do pan-africanismo. O afrocentrismo e outras tendências e, por outro lado, a ideia de classe.
Os neomarxistas, a partir de uma apropriação do Fanon e do Walter Rodney, passaram a defender a ideia de classe como fundamental para o pan-africanismo. Nós tivemos, nesse momento, uma disputa dessas duas correntes. O pan-africanismo na África continuou muito ligado ao continentalismo, na verdade, à ideia de uma integração regional que gradualmente iria se consolidando. E, assim, o pan-africanismo perdeu a unidade que tinha no pós guerra.
Mais recentemente, de 2000 pra cá, após o fim do Apartheid, com a participação forte da África do Sul, da Líbia, da Nigéria e do Zimbabwe, sobretudo, houve o renascimento do pan-africanismo mais continentalista. Isso está vinculado ao crescimento dos países africanos e à fundação da União Africana, também em 2001. Então, há uma preocupação em fazer renascer a ideologia pan-africanista, como uma ideologia de formação de uma nova arca. Daí o slogan: "Soluções africanas para problemas africanos".
E também, claro, tentando atualizar esse ideal para questões que não foram anteriormente muito abordadas como a questão de gênero, a questão da democracia, dos direitos humanos, que não eram questões centrais pro pan-africanismo mais antigo.
Como o pan-africanismo se aproxima dos debates de classe e de movimentos de esquerda, por exemplo?
Isso foi muito forte. O próprio Nkrumah, figura chave para todo o debate pan-africanista, passou a aceitar o socialismo científico, o marxismo comunista, depois do golpe de estado em Gana, em 1966. Dali até sua morte, em 1972, passou a defender essa percepção de um pan-africanismo de classe, stricto sensu. Isso reverberou na Diáspora, no panteras negras, já havia antecedentes claro, e tudo isso, no final dos anos 1960-70, aproximou o pan-africanismo do marxismo, com vários debates de classe.
Essa tendência continua. Até hoje, há uma tendência marxista dentro do pan-africanismo. Mas ela não é a única. Existem algumas mais aproximadas a tendências liberais, e outras que acham que o pan-africanismo tem sua própria tradição política, que não deve ser interpretado como uma variante local do marxismo, ou do liberalismo, ou de outras ideologias ocidentais.
Para os pan-africanistas, a unidade é um elemento maior do que a raça, a classe, o gênero, e outros elementos. Essa tendência continua forte e está tentando construir esse pan-africanismo de um ponto de vista mais institucional da união africana.
O Brasil é um país importante no contexto da chamada Diáspora Negra. Qual a contribuição dos pesquisadores brasileiros para o pensamento pan-africano?
Essa discussão chegou ao Brasil a partir da influência da negritude francófona. Existia, antes disso, na imprensa negra aqui em São Paulo, algumas referências ao Garvey, mas parece ser algo mais esporádico. No final das décadas de 40 e 50, tem, em particular, no Teatro Experimental do Negro (TEN), havia um debate sobre o movimento da negritude francesa, sobre os intelectuais africanos da época. Acho que, no Brasil, o TEN, liderado pelo Abdias do Nascimento, foi, a instituição mais importante dessa chegada do debate pan-africanista aqui no Brasil.
Sobretudo, penso eu, a partir da presença do Abdias, do Ironides Rodrigues, e do Guerreiro Ramos. Eram os três que mais lidavam com essa temática e criaram um pensamento próprio dessa discussão. Existia uma interpretação própria, deles, não só da negritude francófona, mas também dessas outras abordagens pan-africanistas que mal chegavam no Brasil. Eu digo isso porque o Brasil nunca traduziu essas obras clássicas do pan-africanismo. O que chegava, era por uma leitura em francês, geralmente, ainda na década de 1950. Então, era algo não muito contínuo ou generalizado.
Já na década de 1970, aí sim, nós temos uma entrada de uma bibliografia de autores negros, em geral. Não só os pan-africanistas, mas também muitos dos Estados Unidos, que serão lidos por uma nova geração de ativistas do movimento negro, que depois vai formar o Movimento Negro Unificado (MNU), e outras organizações importantes dos anos 1980.
Havia grupos de leituras que liam Amílcar Cabral, Kwame Nkrumah e Frantz Fanon. Eram grupos de ativistas negros, estudantes, que corriam atrás da forma como podiam, e liam essa literatura. Isso na década de 1970-80. Nos anos 2000, eu acho que o debate sobre a diáspora secundarizou o tema do pan-africanismo. Mas também, infelizmente, nunca tivemos a tradução dos textos originais dos pan-africanistas aqui no Brasil. Só recentemente começamos a ter livros sobre o pensamento africano.
Isso está se divulgando rapidamente. Tem alguns livros novos interessantes sobre a temática, que é importante em diversos níveis. No nível político, acadêmico, enfim, há toda uma base de pensamento que foi pouca explorada no Brasil.
Em relação a esse interesse crescente pelos autores, tivemos livros traduzidos do Nkrumah, do Fanon também, e estamos em um contexto de emergência das lutas identitárias. O que explica o aumento da procura por esses autores?
Em primeiro lugar, a entrada dos estudantes negros na universidade. Enquanto isso não ocorria, era muito difícil conseguir pressionar as universidades, e consequentemente as editoras, para trabalhar com essa temática. Também porque havia uma clara predisposição das editoras, dos professores e da universidade a não trabalhar com isso. E não era só uma questão de má-fé. Havia muito de ignorância mesmo, porque o Brasil e a academia brasileira sempre foram muito eurocêntricos.
Parte da esquerda via esse debate pan-africanista de uma forma um pouco problemática, como algo que secundarizaria o debate real da esquerda, que deveria ser o debate sobre as classes. Mas isso está sendo superado. Há uma disposição maior para o diálogo, hoje, sobre essas temáticas todas. Eu acho que a esquerda tradicional está aprendendo também que esse debate pan-africanista pode ser muito interessante para o Brasil. Há muito o que aprender nisso.
É questionável quando se coloca esse debate pan-africanista só no nível da questão de identidade. Porque o debate pan-africanista é maior que isso. Ele estruturou a luta pela descolonização na África, envolveu o debate de gênero, de classe. É algo que estamos só tateando aqui no Brasil.
Há muito o que trabalhar em cima desses assuntos, acho que estamos só no começo. Será importante para que o Brasil, de fato, fique mais cosmopolita, porque o nosso cosmopolitismo na verdade é disfarçado, é enviesado, porque é egocêntrico. Nós só conhecemos aquilo do debate intelectual que vem da Europa e dos Estados Unidos. E quando eu falo Europa, me refiro só a Inglaterra, França e Alemanha.
O Brasil está em uma encruzilhada. Ele criou uma abertura e hoje tem que decidir se vai aprofundar essa abertura, ampliar, democratizar, ou se vai voltar para a caverna, onde o Brasil sempre esteve. Então, é um esforço que está só no início.
É uma luta difícil, sobretudo, para os estudantes negros. Porque eles têm que lutar para se ver mais, sentir um maior reconhecimento na academia, para que as autoras e autores negros africanos sejam lidos, contra a massa de professores que não foi formada nessas temáticas e não tem interesse nessa discussão.
* Atualizado em 24 de setembro de 2018
Edição: Daniel Giovanaz