O "passaralho" da Abril foi um dos primeiros e principais exemplos de empresas utilizando a reforma trabalhista para prejudicar os trabalhadores, na opinião de juristas ouvidos pelo Brasil de Fato. Na última terça-feira (25), o juiz Eduardo José Matiota, da 61ª Vara do Trabalho de São Paulo, anulou as demissões em massas realizadas pela Editora Abril desde dezembro de 2017. A decisão, tomada em uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, pede a reintegração dos demitidos.
As novas regras da CLT entraram em vigor em novembro de 2017, mudando mais de 200 cláusulas, entre elas, o artigo 477-A, que diz que dispensas imotivadas individuais, plúrimas ou coletivas não precisam de "autorização prévia de entidade sindical ou de celebração de convenção coletiva ou acordo coletivo do trabalho para sua efetivação". Segundo Raphael Maia, advogado do Sindicato dos Jornalistas que representou o caso, a empresa aguardou a vigência da Lei para realizar as demissões. Mais de 400 funcionários foram demitidos entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018. Em agosto deste ano, mais 800 foram demitidos pela editora Abril.
"Antigamente, quando ocorria isso, a empresa tinha que nos comunicar e nós recorríamos com ação na justiça. Agora só entramos com a ação depois. A reforma trabalhista tem ainda um dispositivo que diz que a dispensa coletiva não precisa de autorização do sindicato. Essa é a forma que o Congresso arrumou de barrar qualquer tipo de impugnação judicial por parte do sindicato. Isso veio para liberar geral, em outras palavras, a lei diz que a empresa pode fazer o que quiser", explicou Maia, completando que, com a nova legislação, "as dispensas em massa no Brasil estão muito mais facilitadas".
No processo das demissões realizadas em agosto, a Abril não pagou nem as verbas rescisórias nem o salário de indenização ou vale refeição dos funcionários. Com um ato em protesto organizado pelos profissionais demitidos, a empresa pagou apenas parte das verbas rescisórias, sendo que algumas pessoas receberam apenas R$500. Já para os demitidos do final de 2017 e do primeiro semestre deste ano, a empresa ofereceu uma proposta de pagar as verbas rescisórias em um parcelamento em dez vezes, com a promessa de pagamento de um salário a mais, que corresponderia a multa do Artigo 477 da CLT. No entanto, o parcelamento foi interrompido quando a empresa entrou em recuperação judicial.
Segundo Patrícia Zaidan, ex-redatora chefe da Revista Claudia, que trabalhou na Abril por 19 anos, a editora arquitetou o que chama de "dispensa monstruosa" às vésperas de entrar em recuperação judicial, reorganização financeira com intermediação da Justiça para evitar a falência da empresa.
"Dez dias depois da demissão a Abril teria que pagar as verbas rescisórias, mas ela arquitetou de uma forma que neste mesmo dia ela entrou em recuperação judicial, se escudando na barra da saia da justiça para não honrar seus compromissos com os empregados", afirmou.
De acordo com a juíza Noêmia Porto, vice-presidenta da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), a demissão em massa sem acordo coletivo, mesmo facilitada pela nova reforma trabalhista, ainda é inconstitucional no Brasil.
"A reforma trabalhista tentou por lei reformular o entendimento do tribunal, que é baseado na própria Constituição. Lá se diz que pode demitir em massa e isso não precisa da intervenção sindical. O problema é que a Lei 13.467, da reforma trabalhista, é uma lei inferior se comparada à Constituição e às normas internacionais que o país ratificou. De acordo com o STF, as normas internacionais estão acima das leis do país. Quando o juiz pega um caso como esse, mais de mil demitidos, atingindo indistintamente os trabalhadores, sem critério ou negociação coletiva prévia, o juiz afastou essa lei, de patamar inferior, e aplicou diretamente a Constituição do Brasil e as normas internacionais que o Brasil ratificou", explicou.
A Anamatra avalia que grande parte dos dispositivos alterados pela nova CLT possuem "problemas estruturais graves". "Quando falamos da demissão coletiva tem um aspecto que foge a questão jurídica que é o nível de insegurança social que as demissões que atingem um contingente muito grandes de trabalhadores podem gerar", afirmou Porto.
Para Zaidan, que é uma das representantes do Comitê de Jornalistas Demitidos, a Abril deveria pagar a dívida milionária com parte da herança biolionária de seus herdeiros. "A Abril deve um bilhão e seiscentos milhões a inúmeros credores. Para os empregados, a Abril deve 110 milhões de reais. É uma miséria dentro do tamanho da dívida da Abril, e principalmente, diante da fortuna pessoal dos três controladores do grupo, os herdeiros Civita. Os três irmãos juntos detém, em patrimônio pessoal, 3,3 bilhões de dólares, no mínimo 10 bilhões de reais. Se tivesse decência eles pagariam com o dinheiro pessoal, porque essa fortuna, que está publicada na Revista Forbes e já foi divulgada na própria Revista Exame, do grupo Abril, tem sua única fonte de renda nos veículos da Abril. Quem participou da construção desse patrimônio foram esses empregados que agora foram jogados na rua sem nenhum direito", denunciou.
Em nota publicada na noite da quarta-feira (26), a Editora Abril afirmou que irá "recorrer pelos meios cabíveis" da decisão judicial que pede a reintegração dos trabalhadores.
Edição: Daniela Stefano