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Esquerda precisa estar junta no 2º turno contra ameaça autoritária, diz André Singer

Cientista político fala sobre as eleições, o temor de um golpe militar e o papel de Lula no processo eleitoral

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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"Uma recusa de uma solução autoritária que nesse momento está representada no Bolsonaro pode ter um resultado positivo [para o Brasil]"
"Uma recusa de uma solução autoritária que nesse momento está representada no Bolsonaro pode ter um resultado positivo [para o Brasil]" - Marcos Santos/USP Imagens

Cientista político e jornalista, professor da Universidade de São Paulo (USP), André Singer é um dos nomes mais respeitados do ambiente acadêmico brasileiro. Foi porta-voz do primeiro governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), entre 2003 e 2007, e secretário de imprensa do Palácio do Planalto entre 2005 e 2007

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Singer fala sobre a disputa à presidência, o ambiente de polarização no período pré-eleitoral no Brasil e o papel do ex-presidente Lula no processo democrático, mesmo impedido de ser candidato. Confira a íntegra da entrevista com o professor:

Brasil de Fato: Alguns candidatos que não estão tão bem colocados nas pesquisas de intenção de voto, têm condenado a polarização política e defendido o voto útil. Como o senhor avalia esse argumento?

André Singer: A questão da polarização precisa ser analisada a partir de pontos de vista determinados. É claro que, para os candidatos que estão fora disso, ela não interessa, porque estão tentando achar um lugar que passaria por desfazer essa polarização. Claro que ela, em si, pode trazer consequências negativas se você tiver um tipo de radicalização destrutiva.

Agora, por outro lado, se houver um debate nacional como, por exemplo, uma recusa de uma solução autoritária que nesse momento está representada no Bolsonaro, isso pode ter um resultado positivo. Por exemplo, gerando um voto democrático contra a ameaça à democracia que, como percebemos, vai se avolumando desde 2016, quando ocorreu o golpe parlamentar. Então a questão da polarização, se é negativa ou positiva, vai depender do resultado final dela. 

Alguns também têm argumentado o temor de um novo golpe de estado, caso o Partido dos Trabalhadores seja eleito. Qual a sua avalização?

Na verdade, no que diz respeito a esse assunto, falta muita informação. Eu acho que nós tivemos ao longo dos últimos meses, sinais preocupantes, porque vêm aparecendo movimentos oriundos das Forças Armadas, de uma participação na política que não está facultada pela Constituição e que torna o ambiente carregado.

Agora se isso resultaria em um golpe, eu quero crer que não. É evidente que nessa avaliação está envolvido o meu desejo de que não aconteça, e eu acredito que nós não temos informação suficiente para afirmar que isso seja realmente uma probabilidade. Mas por outro lado, nós não podemos ignorar esses sinais que vêm aparecendo, de uma movimentação que não havia até pouco tempo atrás e que realmente faz com que determinadas preocupações com a possibilidade de uma interrupção da democracia se torne pertinente. 

O que explica o fato da direita tradicional do Brasil, como o PSDB, não consiga emplacar seu candidato, enquanto Bolsonaro surge com a força que surgiu nessas eleições?

A origem do fenômeno Bolsonaro está nas manifestações de 2013. É preciso tomar muito cuidado nesse momento da análise, porque eu sei que 2013 é um assunto controvertido, sobretudo entre a esquerda. E eu sempre digo que é preciso afirmar que 2013 começou como um movimento de esquerda, legítimo, consistente, coerente, em busca de maiores investimentos estatais na questão do transporte, depois se ampliou para aquela questão da saúde e educação “padrão Fifa”.

Porém, no bojo das manifestações que começaram com a esquerda, vieram grupos de centro, de direita e também de extrema direita. Depois isso vai ser retomado no final de 2014, quando a presidente Dilma [Rousseff] se reelege com uma margem pequena de votos, e grupos que já haviam aparecido em 2013 reaparecem com uma proposta de impeachment que, naquele momento, era forte nos nichos de extrema direita. Isso vai, pouco a pouco, se ampliando e nós não podemos ignorar a importância que teve nesse processo de ampliação a Operação Lava Jato, que acabou amplificando a ideia de que o PT e setores sociais e políticos que estavam aliados ao PT consistiam em uma organização criminosa que deveria ser extirpada da política brasileira. Tudo isso foi gerando uma radicalização que está por trás da candidatura de Bolsonaro e da amplitude que ela alcançou. Primeiro pelos setores da classe média, e agora, segundo as pesquisas, caminhando para setores de baixa renda também. 

Eu acho que o que acabou acontecendo foi que abriu-se a “caixa de Pandora”, no sentido de que se deflagrou um processo de radicalização, ocupando um espaço do PSDB na oposição do programa do que eu chamo de “lulismo”. Mas era uma oposição, até o final de 2014, com características democráticas, depois passou a ter essas colorações radicalizadas e com tinturas autoritárias nítidas. 

Como o senhor analisa a disputa no campo da esquerda entre o PT e o PDT?

Eu não acho isso natural. Acho que é resultado da nossa incapacidade de ter conduzido uma frente ampla a tempo. Eu me lembro que já em 2015, quando começou a surgir o movimento que acabaria sendo o impeachment, vários de nós levantávamos a necessidade de haver uma frente ampla de esquerda que agregasse desde aquilo que hoje é a candidatura de [Guilherme] Boulos até o que é hoje a candidatura de Ciro Gomes. Naquele momento, essas candidaturas não estavam colocadas, mas esse espectro, precisaria estar junto em torno de um programa mínimo. 

Ocorre que os esforços em torno dessa ideia da frente, que em um primeiro momento todos concordaram, tanto que resultou na formação das duas frentes, a Povo Sem Medo a Brasil Popular. E depois, no andar da carruagem, acabou resultando nessas três candidaturas que hoje estão representadas por Guilherme Boulos, Fernando Haddad e Ciro Gomes. Esse embate entre Fernando Haddad e Ciro Gomes é muito ruim porque nós temos que estar e estaremos juntos no segundo turno, espero, e mais do que isso, nós precisamos estar juntos em uma grande batalha, na direção de deter o retrocesso que está em curso e depois iniciar um processo de reconstrução tanto das conquistas populares, como da própria democracia e das perspectivas de avanço dos trabalhadores. Eu sei que há divergências, mas justamente quando falamos de uma frente, frentes se constrói entre os diferentes. Seria muito importante que essas divergências fossem processadas em um ambiente de solidariedade, fraternidade, em busca de consensos mínimos que eu tenho certeza que existem. 

Mesmo com a inviabilização da candidatura do ex-presidente Lula como candidato, qual o papel que o senhor acredita que o ex-presidente deva ainda cumprir nesse processo eleitoral?

É um papel da maior grandeza, porque ele conseguiu o feito político de sobreviver como a principal liderança popular do país, mesmo estando preso. Ele adotou uma estratégia arriscada de enfrentamento dessa situação, porque insistiu na sua candidatura, quando era claro que ela seria pouco viável, do ponto de vista jurídico, mas essa estratégia arriscada, até esse momento, ela deu resultado. Como dizia [Karl] Marx, a prática é o critério da verdade. Então o resultado é que o ex-presidente Lula está levando o seu candidato, Fernando Haddad, ao segundo turno. É claro que nós estamos baseados em pesquisas, que são resultados do momento, é claro que as coisas podem mudar, e eu como cientista político tenho que dizer isso. Mas neste momento, as pesquisas indicam que Fernando Haddad vai para o segundo turno. Então, se isso se confirma, nós temos que reconhecer que o ex-presidente Lula adotou uma estratégia de êxito, que o coloca como um personagem central do período que nós vamos viver pela frente. 

Caso se confirmem as pesquisas para o segundo turno, teremos uma disputa de rejeições no segundo turno. De um lado, o antifascismo. E do outro o “antipetismo” que, em 2016, levou Fernando Haddad a uma derrota em primeiro turno nas eleições municipais de São Paulo. Isso mudou de lá pra cá? Como o senhor vê essa disputa de rejeições?

Eu acho que houve sim, houve uma mudança e ela tem a ver com o fato de o plano do governo Temer haver fracassado. Isso gerou uma frustração muito grande da população que estava ansiosa por uma melhora da economia, o desemprego está em um patamar insuportável para a população de baixa renda no Brasil, e assim também para o conjunto dos trabalhadores, pois o desemprego significa que as condições de luta por melhores salários diminui muito. Isto posto, nós temos números, por exemplo, da ascensão da preferência pelo PT, que voltou a ostentar índices mais próximos daqueles que existiam cerca de 10 anos atrás, quando o PT estava muito bem avaliado, mostra também que houve uma mudança de ambiente.

No entanto, essa possível guerra de rejeições não deve ser descartada, com relação a um possível segundo turno entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, porque nós teremos um ambiente muito polarizado. Houve uma espécie de cultivo do ódio contra o PT nesse último período, e isso vai se expressar no segundo turno. E é claro que havendo esse tipo de expressão de ódio, sempre há algum tipo de reação, ainda que eu acho que no campo da esquerda, as bandeiras democráticas e o comportamento democrático tem sido muito firme, o que é muito positivo. Do ponto de vista da esquerda, vai ser necessário reafirmar esta adesão à democracia, esta defesa à democracia, para que fique bem claro que a radicalização e as ameaças ao processo democrático estão vindo pela direita. E eu acredito que seja possível a gente diluir um tanto quanto este ambiente hipercarregado e que, na verdade, não interessa a ninguém. 

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira