Planos de Governo

ARTIGO | Um olhar sobre os programas de Saúde nas eleições de 2018

Garantir ou não o direito à saúde pública é o que está em disputa em outubro

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Brasileiros a partir dos 18 anos são os que definirão qual o modelo de saúde que pretendem para os próximos quatro anos.
Brasileiros a partir dos 18 anos são os que definirão qual o modelo de saúde que pretendem para os próximos quatro anos. - Reprodução

Estamos às vésperas do primeiro turno das eleições de 2018, sem dúvida a eleição mais polarizada desde a redemocratização. A questão da polarização deste processo eleitoral não é de menor importância para a análise que desenvolveremos aqui – do setor saúde –, pois as propostas dos principais candidatos de cada campo político expressam este antagonismo de projeto no que concerne ao direito à Saúde no Brasil. Tal polarização, que surgiu por vias tortas em 2013 e ganhou musculatura no processo eleitoral de 2014, resultou num golpe de Estado com a destituição de uma presidenta democraticamente eleita (Dilma Rousseff, em 2016) e com a prisão do líder das pesquisas de intenção de voto para o pleito deste ano, o presidente Lula.

Neste contexto, analisar as propostas para a área presentes nos planos de governo não deve ser feita apenas a partir da lógica estéril, de maior ou menor acerto programático, mas compreendida no cenário das batalhas centrais de nosso tempo.

Temas sempre candentes no debate sobre a Saúde como financiamento, melhorias na gestão, relação público X privado, saúde de populações específicas (LGBTI+, negros e negras, periferias, campo, deficientes etc) tem um tratamento distinto e que baliza um determinado projeto societário presente em cada candidatura. Na maior parte deles consegue-se perceber certa convergência de afirmações, principalmente pelos candidatos de partidos que de uma forma ou de outra foram partícipes da construção da Carta Constitucional de 1988.

Financiamento

Afirmações genéricas como “ampliar e fortalecer” o SUS estão presentes nos programas de Marina Silva, Lula/Haddad* , Ciro Gomes, Guilherme Boulos, Cabo Daciolo, Alckmin e até de Meirelles. Como era de se esperar, os programas de Jair Bolsonaro e de João Amoêdo – que se intitulam liberais na economia e conservadores nos costumes – afirmam que o SUS tem “recursos demais, que são mal administrados”. Para ambos, o SUS vive tempos com dinheiro suficiente, e que bastaria melhorias na gestão dos recursos para que atingíssemos melhores níveis de saúde.

Felizmente, não é isso que dizem os programas dos candidatos do campo progressista. Todos deste campo (João Goulart Filho, Ciro Gomes, Lula/Haddad e Guilherme Boulos) falam em revogar a Emenda Constitucional (EC) 95, que congela os gastos em saúde por 20 anos, e além desta revogação falam em ampliação do investimento em saúde, notadamente do percentual do gasto público. Enquanto Boulos propõe ampliar o gasto federal de 1,7% para 3% do Produto Interno Bruto (PIB) e pôr fim à Desvinculação das Receitas da União (DRU), João Goulart Filho fala em duplicar o orçamento do SUS ao final do mandato de quatro anos. Já Lula/Haddad propõem aumentar a parcela de investimento público em Saúde para 6% do PIB e destinar à área novamente os recursos da exploração do pré-sal.

Parcerias

No plano da relação entre os setores público e privado algumas diferenças se acentuam fora e dentro do campo progressista. Enquanto Bolsonaro propõe o cadastramento universal de médicos – sob bases liberais, recebendo do SUS por serviços prestados – como medida de “salvação do SUS” (já testada nos anos 1970, no Brasil e em vários outros países, o que levou vários sistemas de saúde a colapsar), Marina e Alckmin deixam implícito uma maior participação do setor privado no SUS. O que já existe. Ou seja, maior participação das organizações sociais de saúde (OSS), hospitais filantrópicos e rede conveniada privada, ampliando o espaço do setor privado na assistência através do financiamento público.

Dentre as propostas do campo progressista chama atenção no programa de Ciro Gomes a proposta de comprar serviços e exames do setor privado. Espera-se que tal medida seja apenas uma redundante constatação de que atualmente mais de 90% dos serviços de apoio ao diagnóstico e terapia (SADT) estão nas mãos do setor privado, e de que o Estado continuaria dependendo deste setor para prover a atenção à saúde pública. Caso seja esta a ideia já é preocupante em si, pois o fato do SUS ser aprisionado pela lógica do setor privado já é um dos maiores entraves à sua efetivação como sistema pleno de direitos. Mais arriscada ainda é esta proposta guardar alguma semelhança com os Corujões da Saúde, implementado por João Dória em São Paulo, pois além de tratar os cidadãos e cidadãs que usam o SUS como seres de segunda categoria, demonstrou-se uma medida paliativa que no fundo contribuiu apenas para o lucro de grandes hospitais privados de São Paulo, ao reduzir o tempo ocioso de seus equipamentos durante a madrugada.

Ainda no que tange à relação entre os subsistemas público e privado, chamam atenção as propostas de Boulos e João Goulart Filho, de pôr fim aos contratos de gestão com as OSS, enquanto João Amoêdo defende claramente sua ampliação. Os programas de Marina e Ciro não vão ao ponto, mas deixam implícita uma maior participação, enquanto o programa de Lula/Haddad fala em criar mais mecanismos regulatórios para as OSS, maior fiscalização dos contratos de gestão, o que talvez indique uma demarcação mais firme de governos petistas com este setor.

Da mesma forma, o programa da Coligação “O Povo Feliz de Novo” (PT, PCdoB e Pros) afirma que a Agência Nacional de Saúde (ANS) não pode ficar refém dos interesses das operadoras de saúde na construção de “planos populares”. Uma crítica feita também por Guilherme Boulos que propõe reduzir o co-pagamento e impedir a participação de investidores estrangeiros. Mais uma vez, a proposta de Ciro Gomes, em sentido oposto, fala em criar mecanismos de “melhoria dos planos de saúde” com estímulo à verticalização, ou seja, que os planos de saúde construam sua própria rede hospitalar, prática lesiva não só à livre-concorrência por reforçar a construção de oligopólios (vide o crescimento da Hapvida, um dos maiores planos de saúde com rede verticalizada), mas também aos pacientes, pois tais hospitais são regidos pela lógica do managed Care (cuidado gerenciado), que priva os pacientes muitas vezes de exames e procedimentos necessários à sua saúde, liberando-os apenas através de decisões judiciais.

Expansão do atendimento

Por fim, no que tange a ampliação da rede de serviços, vários programas falam em expandir a Atenção Básica, como Boulos (para 100% de cobertura), Ciro (de forma mais genérica), e Lula/Haddad num contexto de fortalecimento e ampliação do Programa Mais Médicos. Este último, inclusive, propõe a retomada das medidas estruturantes do Mais Médicos, como o fortalecimento da formação profissional, a melhoria da relação médico/habitante com vistas a perseguir índices de países que tenham sistemas universais de saúde como o nosso.

Outro programa que se posiciona sobre o Mais Médicos é o de Jair Bolsonaro, claramente alinhado à corporação médica, o candidato defende a extinção do programa e uma prova de revalidação de diplomas para os médicos estrangeiros que queiram continuar atuando em nosso território.

Há ainda vários outros temas que os programas abordam e que não caberiam neste artigo, ao que indicamos a leitura do documento produzido pelos sanitaristas e professores Mário Scheffer, Lígia Bahia e Ialê Falleiros Braga, disponível na página da Abrasco. Trata-se de excelente trabalho de sistematização, do qual nos beneficiamos para esta análise.

A guisa de conclusão, vale a pena destacar o que está em jogo no período eleitoral que se aproxima: os programas de saúde dos principais candidatos de ambos os pólos da política brasileira (Lula/Haddad e Bolsonaro) exprimem as visões de mundo e de direito à saúde completamente antagônicas.

Enquanto um lado propaga que resolverá o problema da saúde do Brasil fazendo enriquecer uma corporação que não pensa além de sua reserva de mercado, o outro deixa clara a opção por continuar a marcha de construção do SUS enquanto sistema público de direitos, corrigindo distorções e insinuando algumas autocríticas necessárias.

Não há dúvidas de que um movimento sanitário fortalecido terá espaço para propor e criticar, inclusive, questões não tocadas no programa petista, como a abertura ao capital estrangeiro, que ameaça drenar recursos públicos para caixas contábeis de além-mar.

O que está em jogo nesta eleição – e expressa no conjunto de propostas dos candidatos dos dois pólos – é a boa e velha luta de classes. Impor derrota a quem trata a saúde como mera mercadoria, e vidas como se fossem descartáveis, é a tarefa principal deste momento histórico.

 

*Thiago Henrique Silva é médico de Família e Comunidade e membro da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMMP).

Edição: Cecília Figueiredo