América Latina

Artigo | Acordo da Argentina com o FMI é impossível de cumprir

FMI não entende que Argentina tem população que sofre e plano a obriga a sofrer mais para pagar uma dívida que não gerou

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Macri (centro) e Ministro das Finanças, Nicolás Dujovne, se reúnem na sede da ONU com a diretora administrativa do FMI, Christine Lagarde
Macri (centro) e Ministro das Finanças, Nicolás Dujovne, se reúnem na sede da ONU com a diretora administrativa do FMI, Christine Lagarde - Casa Rosada

Está claro que, após 34 meses de gestão, o único apoio concreto que o governo argentino de Mauricio Macri tem é o do Fundo Monetário Internacional, o FMI (com os Estados Unidos por trás, já que é quem tem a última palavra nas decisões desse organismo internacional). E também está bastante claro que as desordenadas medidas que o governo toma são inconsistentes, e até contraditórias, dando a entender que o macrismo nunca teve um plano concreto.

Primeiro, tentou se associar aos grandes bancos e fundos de investimento, que ingressaram divisas ao país, e obtiveram pomposos lucros com o carry trade (aplicação financeira que consiste em tomar dinheiro a uma taxa de juros em um país e aplicá-lo em outra moeda, onde as taxas de juros são maiores), aproveitando que, em 2016 e 2017, as chamadas “lebacs” (títulos do Banco Central argentino) pagavam uma taxa de 38% anual e o câmbio ajustava menos da metade dessa porcentagem.

Porém, desde 25 de abril de 2018, esses grandes bancos e fundos do Banco Central tomaram cerca de 1,5 bilhão de dólares a um preço médio de 20,20 pesos, e fugiram do país em debandada. Inclusive, quando chegou a primeira parte do resgate acertado no primeiro acordo com o FMI (que previa uma ajuda de 50 bilhões de dólares, dos quais 15 bilhões foram enviados nessa primeira etapa), no dia 22 de junho, o processo de fuga de capitais continuava, e passou a consumir também os recursos vindos do Fundo.

Neste 28 de setembro, foi consumado o acordo final, projetando a dívida que a Argentina terá que pagar para que os capitais possam sair do país comprando os dólares que quiserem, livremente e sem nenhum obstáculo.

O objetivo do FMI é representar os credores e assegurar que o país pague seus compromissos, mas também que a Argentina, ao permitir vender esses dólares, garanta a compra de divisas aos evasores de capital, no imediato, no médio e no longo prazo (porque também está claro que desembarcaram para ficar por muitos anos), o que resultará em um dólar o suficientemente alto para que os capitais estrangeiros possam ficar com os ativos do país que considerem mais valiosos.

Tanto o acordo assinado com o FMI como o Projeto de Lei do Orçamento Nacional de 2019 têm como principal objetivo a acumulação de fundos por parte do Estado para poder, essencialmente, pagar a dívida, e o preço desse exercício será o boicote à produção, a reprimarização do país, mais demissões de empregados públicos, o fechamento de estabelecimentos e a estrangeirização do que é considerado mais valioso, dentro desta nação austral, pelos poderes econômicos de fora. Não importa se, para isso, serão afetadas as vidas dos aposentados que sofrem para chegar ao fim do mês, ou se as medidas aumentarão a pobreza e a indigência, e que parte desse aumento será de crianças sofrendo com esses males.

O governo macrista e o FMI chegaram a um novo acordo para fortalecer o programa de resgate de 36 meses, reforçando o que havia sido assinado em junho. O novo acordo compreende uma entrega total de 57,1 bilhões de dólares, o que representa um aumento de 7,1 bilhões em comparação com o primeiro.

Sob o novo esquema, os recursos enviados deixam de ser precatórios (o que permitiria ao governo argentino tomá-los ou não) para serem operativos e disponíveis inclusive de forma antecipada: até 2019, o FMI assegurará o financiamento por 36,2 bilhões de dólares em DES (direitos especiais de saque, instrumento criado para completar as reservas oficiais dos países membros), dos quais cerca de 13,4 bilhões seriam enviados ainda este ano – e somados aos 15 bilhões de junho, totalizando 28,4 bilhões em todo o ano de 2018. Em 2019, os envios em DES seriam trimestrais, chegando um total aproximado de 22,8 bilhões a mais.

Em 2020, seriam entregues os quase seis bilhões restantes, e depois, nem um dólar mais, apesar de que ainda será preciso pagar a dívida com o FMI, além da monstruosa dívida interna gerada pelo macrismo.

Sem um alto roll over, os fundos entregues não serão suficientes

Para o último trimestre de 2018, segundo o Programa Financeiro do governo, o país terá que enfrentar os vencimentos dos títulos de dívida e juros em divisas estrangeiras (a maior parte) e em pesos, um montante total de 34,98 bilhões de dólares. Entre as fontes para se arcar com este pagamento estavam previstos os 6 bilhões da quota trimestral de setembro (que não se produziu) e a de dezembro de 2018.

Mas o novo acordo amplia os fundos ao equivalente (em DES) a 13,4 bilhões. Portanto, será necessário que os detentores de títulos de dívida argentina até 21,6 bilhões renovem os mesmo em sua totalidade.

Para 2019, o panorama é ainda pior. O Programa Financeiro projetado no Orçamento da Administração Nacional prevê vencimentos de títulos de dívida e juros por 3,1 trilhões de pesos, os quais, se unificamos o valor em dólares à cotação média esperada de 40 pesos por dólar, resultará em 77,4 bilhões de dólares, com os quais tentarão amortizar a dívida em 2 trilhões de pesos.

Na verdade, a operação visa trocar a maioria dos títulos de dívida velhos por títulos novos, e aqui é preciso advertir que muitos detentores desses títulos estão esperando seu vencimento para sair com dólares da Argentina. O total de vencimentos, tanto em pesos quanto em divisas estrangeiras, dentro da cotação esperada, dá um total de 50,67 bilhões de dólares.

Isso significa que, no hipotético caso de que se renovem todos os títulos, o governo deverá se endividar em mais 26,75 bilhões de dólares para cobrir o esperado déficit fiscal, equivalente a 14.97 bilhões de dólares (uma vez que tomam dívida externa para financiar o déficit fiscal, que é em pesos), e pagar uma dívida que não poderá ser renovada.

Como uma parte dessa dívida é com o Banco Central argentino (adiantamentos transitórios), com o Banco Nación (estatal) e reestruturações diversas – majoritariamente em moeda nacional, que se vão financiando com colocações de títulos do tesouro, os chamados “letes” –, o governo de Macri, ainda contando com o adicional do FMI, precisará de mais 4 bilhões de dólares aproximadamente, um valor similar ao que está previsto para ser gasto em obras públicas na capital do país, no ano que vem (184,2 bilhões de pesos), que será um ano de eleições presidenciais.

Em síntese, apesar do importante apoio do FMI, Macri depende fundamentalmente da renovação dos detentores de títulos. Se não se produz esse roll over tão alto – num marco onde, apesar das taxas que se pagam, não é fácil encontrar quem queira um título de dívida argentino –, o país não poderá enfrentar os seus compromissos, e entrará em um processo seletivo de falta de pagamentos.

Esse simples fato pode desencadear o efeito dominó sobre os outros credores, e com isso a moratória e o bloqueio de pagamentos será inevitável.

Um governo subordinado ao FMI

Para enfrentar esses compromissos (internos e externos), a Argentina deverá crescer e alcançar um superávit comercial. Mas, no Orçamento Nacional de 2019, está prevista uma queda do PIB de 2,4% neste ano, com déficit comercial (as importações superando as exportações). Milagrosamente, para 2019 o PIB cairia somente 0,5% e as exportações equilibrariam as importações de bens e serviços.

Apesar dessa mostra de inconsistência e uma tentativa de confundir o desejo com a realidade, o novo presidente do Banco Central, Guido Sandleris, diz que em vez de combater a inflação com metas, o fará freando a criação de dinheiro primário (base monetária) até junho de 2019. Essa base monetária é gerada pela entrada de divisas, através dos financiamentos ao Tesouro da Nação e por descontos ao setor privado.

Paralelamente, em uma nova versão da tabela cambiária de Martínez de Hoz (ministro de Economia da ditadura civil-militar de 1976-1983), o governo propõe que o dólar, a partir de 1° de outubro, passe a flutuar entre 34 e 44 pesos (atualmente está em 42) e que essa faixa de flutuação tenha um incremento mensal de 3%.

A desvalorização programada de 3% mensal é incompatível com a meta de crescimento zero até junho de 2019 sem base monetária, porque é sua principal fonte de criação de dinheiro, e inclusive devemos incluir a entrada de divisas do crédito do FMI até junho de 2019.

Contudo, de todas as imbecilidades que se dizem e fazem dentro do governo – que demostram o viés de sua formação a partir de uma teoria econômica vulgar e rasteira, como é o neoliberalismo ultra ortodoxo –, a pior prova de desconhecimento é a estimativa do valor médio do dólar em 40,10 pesos para todo o ano que vem, com um índice de no máximo 42 pesos em dezembro de 2019 – considerando que este é o valor da cotação na sexta-feira, 28 de setembro.

Por que o fazem? Porque o Estado arrecada em pesos, e se fixassem corretamente o valor ficaria evidente que a arrecadação não seria suficiente para pagar os juros da dívida e o capital em divisas, que vence e não se renova. Em resumo: será preciso pagar essa dívida.

Em agosto de 2018, as importações superaram as exportações em 1,1 bilhão de dólares. Além disso, acrescentemos o último número de fuga de capitais líquida, também do mês passado, publicado nesta semana pelo próprio Banco Central em seu balanço cambiário, que foi de 2,8 bilhão de dólares. Somando ambas as cifras, esses quase 4 bilhões são mais da metade do aumento de 7,1 bilhões de dólares outorgados pelo FMI para serem agregados ao crédito original de 50 bilhões.

Portanto, por mais que o BCRA aumente os encaixes e reduza a quantidade de dinheiro disponível no mercado à sua mínima expressão, o único que vai conseguir é fazer com que a taxa de juros aumente ainda mais, e com isso se produzirão mais rupturas nas cadeias de pagamento, e mais recessão. A única coisa que o FMI garante por enquanto é que os dólares estarão disponíveis quase exclusivamente para o pagamento da dívida, e com isso tentam convencer os credores e detentores de títulos de dívida da Argentina sobre a renovação dos mesmos.

O FMI não entende

O que o FMI não entende é que a Argentina tem uma população que sofre até o limite do indescritível, e o plano obriga essa população a sofrer mais para pagar uma dívida que não gerou. Nos perguntamos: que obra de infraestrutura foi realizada por este governo? Que mudanças tivemos nesta Argentina macrista?

E o FMI tampouco compreende que:

– Estão considerando como já consumada a renovação de todas as amortizações, e será preciso ver se isso pode acontecer e em que proporção.

– A fuga de capitais cresce todos os meses. Desde 1° de janeiro de 2016 até 31 de agosto de 2018, fugiram da Argentina 52,6 bilhões de dólares. Desse montante, 22,6 bilhões saíram somente nos primeiros oitos meses deste ano

– Estão propiciando um forte processo recessivo, que prejudicará a população, o que não importa ao FMI, mas que também significa uma diminuição na arrecadação, que é em pesos, contra vencimentos de dívida majoritariamente em divisas estrangeiras.

– Quando as pessoas não puderem mais pagar as tarifas de gás, luz e água, ou consumir os combustíveis dolarizados, quando não se puder mais pagar os impostos, quando forem mais as pessoas sem dinheiro suficiente para chegar ao fim do mês, ou quando elas não puderem comprar os medicamentos ou os materiais escolares dos filhos na escola, etc, o povo irá às ruas propondo:

1) Suspender todos os pagamentos externos.

2) Reestruturar a dívida, inclusive a tomada com o FMI, com o retiro do adiamento unilateral dos vencimentos.

3) Obrigar Macri a renunciar ao cargo de presidente, por manifesta incapacidade para exercê-lo.

Christine Lagarde, a chefa do FMI, aposta que isso não irá acontecer antes de que ela renuncie ao seu mandato no organismo e assuma a Presidência do Banco Central Europeu. O tempo dirá se o proposto pela diretora do Fundo é viável ou não. Mas, para os argentinos, isso é o que menos interessa. 

*Hugo Rovelli é economista especializado em temas tributários e monetários. Professor de Política Econômica na Universidade de Buenos Aires. Ex-diretor de Políticas Macroeconômicas do Ministério da Economia.

Edição: Portal Vermelho