Entre os dias 12 e 15 de outubro, cerca de 60 mil mulheres se reuniram na pequena cidade de Trelew, na província de Chubut, região patagônica da Argentina, para participar do 33º Encontro Nacional de Mulheres (ENM), realizado anualmente no país.
Neste ano, através de diversas oficinas, atividades culturais e marchas pelas ruas da cidade, as participantes debateram sua atuação política no país. Durante o encontro, elas reafirmaram o compromisso e a força dos tradicionais pañuelos verdes, símbolo da Campanha Nacional pela Legalização do Aborto, que expandiu o debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no país e propôs a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (IVE), vetada pelo Senado argentino em agosto deste ano.
Entre os encaminhamentos do massivo encontro, elas definiram também onde será realizado o encontro de 2019, que acontecerá em La Plata, às vésperas das eleições do país, e a reformulação do nome da reunião anual, que passa a ser chamada de Encontro Plurinacional de Mulheres, a partir da reivindicação de mulheres indígenas presentes que defenderam a autodeterminação de seus povos no território argentino.
Uma multitudinária manifestação realizada no domingo (14) como um dos atos de encerramento do encontro foi reprimida pela polícia local. Cerca de dez manifestantes foram presas e liberadas da madrugada da segunda-feira (15) e outras tiveram ferimentos causados pelas balas de borracha e cassetetes utilizados pelos policiais.
Em um relato publicado no Marcha Notícias, Nadia Fink, Julieta Lopresto Palermo e Camila Parodi narram os acontecimentos em Trelew durante os dias do encontro que expressa a força da organização das mulheres, entre elas, muitas garotas que protagonizam o feminismo no país hoje, e o caráter popular do movimento.
A seguir, o relato completo:
Que nada possa ofuscar este encontro: fomos milhares, fomos povo
A sede do 34ª Encontro de Mulheres já está definida: La Plata será o lugar onde milhares de mulheres se encontrarão no próximo ano. Será Plurinacional, porque esse eixo já não pode ser ignorado, sobretudo depois de que a oficina “Autodeterminação dos povos” foi uma das que mais reuniu pessoas. Acontecerá também uma semana antes das eleições presidenciais e dos governos das províncias [governos estaduais], para deixar claro o rechaço aos governos de [Maurício] Macri, [Maria Eugênia] Vidal [governadora da província de Buenos Aires] e companhia, com suas políticas de empobrecimento, discriminação e repressão.
Mas, enquanto isso, aconteceu o encontro de Trelew, que nos recebeu com sua estepe característica. A cidade do nordeste da Patagônia, de 100 mil habitantes, recebeu as 60 mil mulheres que participaram do 33º Encontro Nacional de Mulheres. Convivemos com o vento e a terra, com as vizinhas e os vizinhos, com os cidadãos locais que abriram suas portas e nos deram orientações e caronas até diversos pontos.
Recordemos, se trata da cidade com a maior desocupação da província, com o fechamento de várias indústrias têxteis que configuravam uma importante fonte de trabalho.
É também a província que sofreu uma repressão contra professores em março, com greves prolongadas durante meses. Também é a cidade onde sobrevoam as ideias revolucionárias de Ana María Villarreal, Clarisa Lea Place, María Angélica Sabelli e Susana Lesgart, fuziladas no Massacre de Trelew, em agosto de 1972.
A marcha foi uma festa multicolor e ondulante. Percorremos as ruas subindo e descendo ao ritmo de cantos e tambores. Enquanto diversos dirigentes sociais afirmavam em Buenos Aires que “os bairros não estão preparados para o debate sobre aborto”, na marcha realizada nas ruas, sobretudo nos bairros mais distanciados, todos esses discursos foram ressignificados. Vizinhas e vizinhos saíram nas calçadas, varandas e esquinas para receber a marcha que ocupou mais de vinte quadras. Com cartazes e panos verdes, centenas de vizinhas trelewenses aplaudiram as 60 mil participantes que, desta vez, realizaram um itinerário com maior presença nos bairros do que no centro urbano.
Com este gesto, demonstrou-se como os bairros e suas mulheres são as mais preparadas para visibilizar esse debate que os setores poderosos querem entorpecer. Várias vizinhas saíram ao encontro das participantes, para estabelecer alguma troca, abraçar, abastecer com água ou mate, para tirar foto ou saudar as participantes que modificaram o cotidiano do domingo.
Quando terminava a multitudinária marcha, as forças repressivas decidiram realizar uma aparição estelar. Trata-se de uma ação caracterizada e identificada pelas mulheres desde o 30º Encontro, realizado em Mar del Plata, onde o então governo de Daniel Scioli deslocou um operativo organizado para alterar o eixo dos encontros, que começavam a ser massivos.
Este dispositivo foi repetido em Rosário, no Chaco e agora também em Chubut, onde, com pequenos focos de conflito e repressão, tentam produzir uma sensação de mal-estar, que transforma as participantes dos encontros em desconhecidas, modificando os laços construídos durante os dias anteriores.
As detenções arbitrárias de pelo menos 12 mulheres, algumas delas feridas, mostram uma atuação direcionada e misógina: as fotos que circulam mostram a caçada que realizaram homens e jovens sem identificação e vestidos à paisana. Também o apedrejamento a alguns micro-ônibus com garotas que regressavam aos seus destinos na madrugada foi um reflexo disso: o machismo e a misoginia à espreita aproveitam qualquer disparo para sair com força.
No entanto, nada poderá tirar das retinas das e dos habitantes de Trelew o multitudinário encontro, os debates ativos, os afetuosos abraços, a marcha multicolor, os panos verdes e os cantos que convocam: “mulher, escuta, una-se à luta”.
Tampouco poderão apagá-los dos corações das participantes. Sobretudo, dos corações das garotas, que sabem que o futuro chegou há pouco e que nossa revolução é incontornável.
Edição: Versão em português: Luiza Mançano