Cada vez mais representantes da classe artística têm entendido que se posicionar politicamente é um dever do profissional que ocupa a praça pública, trazendo reflexões e debates. Com a corrida presidencial polarizada entre o projeto popular e democrático de Fernando Haddad (PT) e o projeto de extrema direita de Jair Bolsonaro (PSL), eles respondem prontamente à necessidade de defender a democracia, conquistada a duras penas pela luta popular.
Chico César se soma a esse grupo. Paraibano, cantor, compositor e jornalista brasileiro, ele atua na cena musical desde o início da década de 1990 e conta com oito álbuns -- o mais recente é Estado de Poesia (2015). De 2011 a 2014, o cantor e compositor também ocupou o cargo de secretário de Cultura do estado da Paraíba.
O nordestino nasceu no ano de 1964, quando o Brasil viu surgir um dos períodos mais tristes de sua história: a ditadura militar. Hoje, aos 54 anos, Chico César vê com tristeza o momento político do país e o fortalecimento das ideias fascistas defendidas por Jair Bolsonaro e seus apoiadores. No entanto, também acredita que o povo brasileiro é forte para resistir, e cita como exemplo a própria região onde nasceu: “Acho que que o Nordeste é grande para dizer: viva o povo brasileiro”.
À Rádio Brasil de Fato, ele concedeu uma entrevista para o programa No Jardim da Política, que vai ao ar todas as quintas-feiras, das 14h às 15h30. Confira a íntegra do bate-papo a seguir:
Brasil de Fato – Como você entende o papel social do artista?
Chico César – Acho, sinceramente, que o papel do artista é provocar ambiguidades de leitura, de interpretação, trazer novos signos, provocações. Não cair no lugar do slogan, do panfleto, porque esse lugar já é ocupado por outros segmentos da sociedade. Nós, enquanto criadores, devemos estimular sempre a dúvida, o questionamento, inclusive para os que estão mais próximos a nós, porque, se não, podemos nos tornar apenas emissores, ou o que é pior: repetidores de slogans.
Penso que, quanto mais rico de lugares de fala, de falas emancipatórias e com menos certezas, o artista cumpre o seu papel. É assim que eu tento cumprir o meu. Em vez de instaurar um estado autoritário, de um lugar único de fala, é provocar um estado de poesia nas pessoas, fazendo com que elas próprias tenham vontade de trazer à tona suas falas.
Como foi ocupar um espaço institucional como a Secretaria de Cultura da Paraíba? O que isso te ensinou e o que vem a somar para o artista, militante e cidadão Chico César?
Foi fundamental e pedagógico assumir a gestão cultural primeiro da capital do meu estado, João Pessoa, e depois, um desafio maior, criar a Secretaria de Cultura do meu estado. O estado, enquanto instituição, é muito burocratizado, e me fez ver que a sociedade civil é muito poderosa e ela pode pressionar o estado a agir e fazer.
Quando você entra no estado, imediatamente tem que abrir espaço para uma gestão participativa, colaborativa, em que a sociedade tenha seus espaços de questionamentos e decisão. Percebi que ser governo é difícil, mas é bom. Gostei muito de estar ali ajudando, de certo modo, a máquina burocrática a avançar.
Tenho para mim que obtive um saldo muito positivo de trazer a participação da sociedade, realizar festivais, fazer chegar o Fundo de Incentivo à Cultura nas regiões mais profundas do estado, e isso me deixou muito feliz.
Você é paraibano e escreveu seu último álbum, Estado de Poesia, em solo nordestino. O que é o Nordeste brasileiro, os homens e as mulheres nordestinos, para Chico César?
O Nordeste é um lugar de muito questionamento, de muita leitura -- não à toa a literatura de cordel é um dos nossos símbolos. A gente logo cedo começa a ler e ouvir histórias fantásticas, e isso nos permite ser um povo sonhador.
A minha região é de muitas carências, mas que eu vejo mais como potências. Não à toa a arte brasileira é toda permeada pela presença dos nordestinos que, desde o Bando da Lua, dos músicos que estavam ali fazendo nascer a música brasileira logo no comecinho. Não é à toa que Caymmi é nordestino, que o tropicalismo vem de lá, que a bossa nova vem de lá com João Gilberto.
As grandes revoluções transformadoras do Brasil vêm de lá: Canudos, a Revolta dos Malês -- que está muito na minha cabeça agora, por causa desse assassinato do Moa de Katendê por uma questão político-ideológica. Depois que saíram os primeiros resultados das eleições, um homem doce, da capoeira, plácido, um artista internacional e professor de gente do mundo inteiro, é assassinado em sua terra, Salvador da Bahia.
Para mim, a Revolta dos Malês, a presença da inteligência do negro e do africano, do mouro, acho que isso tudo faz o Nordeste dar uma profundidade, como a que Câmara Cascudo teve, Ariano Suassuna teve, que Gilberto Gil tem, e Jorge Amado teve. Acho que o Nordeste é grande para dizer: viva o povo brasileiro.
Você participou das duas edições do Festival Lula Livre, no Rio de Janeiro e em São Paulo, se manifestando politicamente. Como entende o momento político que vivemos no Brasil?
Acho que é um momento confuso, há muita desinformação. A comunicação tem sido feita de modo muito imediato através de memes, WhatsApp; as pessoas não questionam as fontes, há muitas fake news. Há um monstro que, de certa forma, foi colocado nas ruas a partir de 2013, com a complacência do PSDB, que fugiu do controle e hoje escancara a face mais dura, cruel e irracional, que é o fascismo brasileiro. O Brasil não cordial, de fato. O Brasil que é capaz de fazer com que um irmão negro mate outro negro mestre de capoeira.
É o que faz com que rapazes covardemente desenhem a suástica na barriga de uma moça de 19 anos, faz com que alguém poste em sua rede social "morte aos nordestinos", faz com que as pessoas tentem se separar quando, na verdade, nós devemos tentar cada vez mais nos unir.
Essa é uma hora em que seria bom o PSDB fazer um mea culpa e se juntar em uma defesa pela democracia no Brasil. É preciso também que o próprio Partido dos Trabalhadores faça essa sinalização clara de que quer a presença dos tucanos em seu palanque e ao seu lado no governo, porque é preciso uma política que contemple a democracia, defenda a república e a nossa Constituição, que coloque de modo muito enfático que a Constituição de 30 anos precisa ser cumprida à risca.
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Como você enxerga essa onda de ódio e o apoio que o candidato de extrema direita Jair Bolsonaro tem recebido? O que significaria uma vitória dele?
Acho que, antes da vitória, a gente já vê os frutos dessa árvore envenenada. Eles estão espalhados no Brasil todo. Uma campanha de ódio contra mulheres, negros, trans, índios.
Vejo com muito pavor o resultado das eleições em Mato Grosso e Goiás, em que dois candidatos da extrema direita, ligados ao agronegócio, ganharam em primeiro turno. Vejo com bastante pasmo o resultado das eleições no Rio de Janeiro, em que a política tradicional vai toda por água abaixo e tem um segundo turno em que vai um candidato da extrema direita, com uma vantagem que não se imaginava. Vejo com tristeza que políticos tradicionais, inclusive políticos que eu não admiro, como César Maia, não terem sido eleitos; ou políticos que eu admiro como Eduardo Suplicy e Dilma Rousseff não terem sido eleitos, porque isso abre espaço para que um baixo escalão, uma baixa política, assuma esse lugar que não é da política -- é da não política, do não pensamento, do não questionamento.
Vejo que essa candidatura de extrema direita ir para o segundo turno com essa vantagem traz e provoca muitos questionamentos, da questão da educação, de ter deixado os meios de comunicação nas mãos da direita, sem questionar como é que eles estavam usando esses mecanismos de comunicação. Creio que se deu muitas oportunidades a jovens da periferia para frequentar as escolas, gente da classe média baixa também, mas se ofereceu uma escola sem questionamento, sem substância política, sem filosofia, história. Essas pessoas precisariam ter tido história, filosofia, para não repetir slogans que são nocivos à própria noção da democracia. Eles estão repetindo slogans que, daqui a pouco, talvez nem possam mais ir para a rua dizê-los.
No seu último álbum, Estado de Poesia, há a música “Reis do Agronegócio”, uma crítica explícita aos grandes proprietários de terra no país. Recentemente, a Bancada Ruralista declarou apoio ao candidato de extrema direita Jair Bolsonaro. Como vê a concentração e a luta por terra no nosso país?
Essa questão do agronegócio infelizmente saiu da UDR, a União Democrática Ruralista, faz tempo, e cooptou inclusive setores da esquerda. Na música eu falo que "até comunistas fazem parte do lobby do agronegócio". A letra é do Carlos Menor, mas eu concordo plenamente.
Você tinha na Kátia Abreu, que foi vice de Ciro Gomes (PDT), uma das grandes amigas da presidenta Dilma Rousseff. E foi amiga, foi fiel até o final, até ela cair. Mas nós sabemos que Kátia Abreu é da linha de frente do agronegócio, que fazia leilões para juntar dinheiro para fortalecer as milícias que iam expulsar os indígenas de suas terras. Então não é uma coisa que está "lá", que "foram eles". A própria Dilma fez Belo Monte, que é uma coisa que destruiu terras indígenas.
Nós temos que ser críticos, realistas e perceber que eles estão mais próximos de nós do que seria de bom alvitre, do que seria aconselhável. Hoje eles estão ai ganhando no primeiro turno em Goiás e Mato Grosso, porque nós permitimos que eles crescessem. Nós, de certa forma, nos juntamos a eles. Agora, é hora de nos juntarmos a Sonia Guajajara, a Ailton Krenak, a todos os parentes indígenas, lideranças ribeirinhas.
É preciso saber que nós não podemos caminhar sozinhos. É preciso se abrir para que a população mais engajada desse país, até gente que não necessariamente concorda com a pregação mais ortodoxa, se junte a nós, para a gente não padecer muito fortemente nos próximos dois, três, quatro anos. É preciso que o país não se submeta a essa experiência, é preciso mostrar o programa que defende a democracia em contraposição ao programa que traz a opressão de volta para todos.
Edição: Daniel Giovanaz