Educação

Artigo | A interiorização das Universidades Federais foi um acerto estratégico

A universidade pública mudou na última década e, mais do que nunca, é hoje uma instituição imprescindível para o país

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Campus da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, criada no governo Lula, foi a primeira a ter reitor negro.
Campus da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, criada no governo Lula, foi a primeira a ter reitor negro. - Wikimedia Commons

O ensino superior iniciou-se tardiamente no Brasil, apenas na primeira metade do século XIX foram implantadas as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. A partir de então surgiram outras Escolas Superiores ou Faculdades isoladas e disciplinares, como Escolas de Agronomia, de Enfermagem, de Engenharia, e Faculdades de Direito, Medicina, Pedagogia entre outras, em diversas regiões do país, consolidando um modelo de educação superior sem universidades. Apenas nas primeiras décadas do século XX foram instaladas as primeiras universidades por iniciativas estaduais e, a partir da década de 1940, iniciou-se um processo de federalização das universidades. 

Dos primeiros campi das universidades federais estabelecidos nas décadas de 1950-1960, seguiu-se um crescimento lento até a década de 1980, quando houve um aumento de novos campi, sobretudo na região Norte. A década de 1990 foi marcada por drástica redução na criação de novos campi e, a partir dos primeiros anos do século XXI, houve uma nova fase de crescimento em todas as regiões, dobrando o número de campi existentes no país.

A principal política pública responsável por esse crescimento foi o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), implantado no governo Lula (2003-2011) sob a coordenação do então ministro da Educação Fernando Haddad, a partir de 2007, tendo havido também uma primeira fase de expansão do Ensino Superior Federal, denominada Expansão I, que compreendeu os anos de 2003 a 2007, e outra fase de significativa criação de novos campi, entre os anos de 2012 a 2015, no governo de Dilma Rousseff.

O REUNI visou o aumento de vagas e também a expansão da rede universitária, sobretudo na perspectiva de atender o interior do país, dado que a maioria das universidades se encontrava nas capitais e cidades de maior porte. De fato, o processo de interiorização dos campi das universidades federais brasileiras ampliou o número de municípios atendidos pelas universidades de 114 em 2003 para 237 até o final de 2011, e resultou em um aumento de aproximadamente 70% das matrículas presenciais na rede federal. Os impactos desse investimento no desenvolvimento do país têm sido pouco discutidos e valorizados pela mídia e pelo atual governo. Basta ver a reduzida informação relacionada a esse assunto disponível no portal do Ministério da Educação.

Campi é o plural de campus, que é o local onde se situa a instituição universitária, também "chamada cidade universitária" ou pólo universitário. Quando a universidade tem mais de um campus é chamada de multicampi.

A análise dos períodos antes e depois da expansão indica que houve aumento significativo no número de universidades federais, que aumentou em 17 novas instituições, contudo o principal impacto para a interiorização do ensino superior público foi o expressivo aumento no número de campi, revelando que a política atingiu as universidades de forma a induzir a hegemonia de um modelo universitário multicampi, anteriormente existente apenas em parte das universidades federais. As novas universidades criadas também tiveram tendência a adotar o modelo multicampi.

No caso das novas universidades, foi priorizado o atendimento a regiões descobertas pela rede federal como, por exemplo, o sul e oeste da Bahia, e o extremo sul e oeste do Rio Grande do Sul. Cabe destacar dois projetos inovadores e estratégicos de colocar o ensino superior a serviço da internacionalização em importantes contextos geopolíticos, os Países de Língua Portuguesa por meio da Universidade de Integração Internacional de Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), instalada no Ceará, e a América Latina, por meio da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), instalada em Foz do Iguaçu, na tríplice fronteira.

O REUNI também estimulou as universidades a modificar a sua estrutura, criando novos campi. E nos casos em que a instituição já era multicampi ou tinha projeto de expansão, foi determinante na viabilização de diversos processos desencadeados pelas universidades por iniciativa própria, mas que em muitos casos foram limitados por dificuldades orçamentárias e de pessoal. A adesão das universidades ao REUNI viabilizou esses campi.

Impactos da expansão e interiorização das Universidades Federais

O impacto mais perceptível pela sociedade é o aumento no número de vagas para os cursos de graduação e pós-graduação, mas a situação pode ser analisada de forma muito mais complexa. Por exemplo, no ponto de vista econômico, uma região que recebe um campus universitário se beneficia já no curto prazo pelo investimento federal no município em termos dos salários e gastos da universidade em seus processos de instalação e manutenção, assim como no movimento na economia local causado pela vinda de estudantes de outras regiões. Um efeito de médio e longo prazo relaciona-se aos egressos e ao impacto da qualificação e da inovação na economia local, também gerado pela atenção com a qual os temas locais passam a ser tratados por parte das pesquisas e projetos de extensão desenvolvidos por essas universidades.

Outros impactos de maior dificuldade de mensuração, mas determinantes para o desenvolvimento regional, estão ligados ao desenvolvimento humano. A disseminação da cultura universitária, que agrega valores como a democracia, liberdade, responsabilidade social, pensamento científico e crítico, traz importantes contribuições regionalmente nos âmbitos político, social e cultural. Ainda que todo o sistema de ensino superior brasileiro deva atuar no sentido do atendimento a essa demanda, diversos fatores – como a estrutura acadêmica e administrativa mais diversificada e democrática, o apoio a permanente qualificação profissional e internacionalização, o regime de trabalho que possibilita condições para a realização de projetos de pesquisa e extensão, entre outros – fortalecem a ideia de que as universidades públicas, especialmente as federais, estejam mais bem dotadas das condições para cumprir esse papel.

Finamente, a possibilidade de criação de novas universidades e campi promoveu as condições para que a própria universidade avançasse em seus modelos institucionais e de avaliação da qualidade, favorecendo, sobretudo, a interdisciplinaridade, a sustentabilidade e o diálogo do meio acadêmico com a realidade das comunidades, o que, de fato, tem sido verificado em diversos casos.

A partir do REUNI houve significativa mudança do perfil dos discentes, agregando parcelas da população antes pouco representadas nas universidades públicas, como indígenas, negros, moradores da periferia, povos do campo, LGBTs e outros, na grande maioria das vezes compondo a primeira geração da família a obter um diploma de ensino superior. Essas mudanças aumentaram a diversidade sociocultural e trouxeram novos desafios antes ignorados pelas instituições que, apesar de públicas, atendiam a uma restrita parcela da elite e da classe média do país. Lidar com essa nova realidade, que na verdade é a realidade social do Brasil, significa trazer a universidade para um local de relevância social estratégica para o país, fato ainda não compreendido pela maioria da população e por porção significativa da classe política que apresenta um discurso de defesa aberta do corte de verbas das universidades públicas, fundamentado em uma suposta inversão de prioridades entre o ensino superior e o ensino básico por parte do orçamento do Ministério da Educação.

Tal discurso tendencioso ignora diversos aspectos da questão como, por exemplo, que a ciência é produzida no Brasil majoritariamente nas universidades públicas, que os Institutos Federais ofertam ensino médio de excelente qualidade, e que estados e municípios são corresponsáveis pelo financiamento da educação básica, ao passo que o financiamento da educação superior pública recai fortemente na esfera federal. Mas talvez a principal questão de fundo é o necessário aumento dos recursos destinados à educação, ou seja, o aumento no orçamento do MEC, o que passa por rever a lei do congelamento de teto dos gastos públicos e por discutir com transparência o volume de recursos do orçamento da União destinados ao pagamento dos juros da dívida pública.

A universidade pública é uma instituição imprescindível para a sociedade porque, diferentemente de uma organização privada autocentrada, tem a sociedade como sua referência. O exercício da gestão democrática, aliado à liberdade de pensamento e expressão confere às universidades a condição de atuarem como consciência crítica da sociedade e dos governos. Por isso, confia-se às universidades o papel de atuarem fortemente no sentido da transformação da sociedade para patamares civilizatórios mais elevados, possibilidade que sempre foi vista como ameaça pelos governos autoritários.

É fato inegável que os novos campi das universidades federais estão promovendo uma verdadeira revolução no país, ampliando o acesso ao ensino superior, mudando o perfil do estudante universitário, aumentando a produção de conhecimento sobre fatos e regiões antes ignoradas pela academia, oxigenando a cultura universitária, enfim, aproximando a universidade da sociedade, e fortalecendo a sua vocação de agente transformador da realidade brasileira, como Darcy Ribeiro sempre insistiu.

A compreensão das universidades federais como instituições estratégicas ao desenvolvimento, tanto humano quanto regional, é atualmente uma necessidade premente ao poder público federal e à sociedade brasileira. Por outro lado, todo o esforço investido na última década no fortalecimento das universidades federais está ameaçado em um horizonte de ataques que visam tanto a drástica redução orçamentária, quanto a intervenção na sua autonomia de gestão, prevista na Constituição.

*Professor da Universidade de Brasília (UnB)

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira