A cultura do ódio e da violência tem sido a principal marca da campanha à Presidência de Jair Bolsonaro. O culto à violência e os ataques às minorias sociais, étnicas e de gênero, têm omitido outro alvo preferencial da família Bolsonaro: os professores. Desde 2014, o clã bolsonarista apadrinhou os projetos de lei “Escola Sem Partido”, com o pretexto de combater uma pretensa doutrinação marxista e a “ideologia de gênero” nas escolas. Ao abraçar essa proposta, Bolsonaro e seus filhos elegeram os professores como os verdadeiros culpados pelo fracasso do sistema educacional brasileiro.
Analisando o programa de governo de Jair Bolsonaro, esse ataque aos professores se percebe de forma mais nítida. A maior parte das propostas apresentadas para o campo da educação são reativas e não propositivas de fato. Combater Paulo Freire, combater a “doutrinação”, combater a “ideologia de gênero”. Importante esclarecer que esse combate, na verdade, está ligado à profissão docente, à liberdade de cátedra, à autonomia universitária. A educação que Bolsonaro defende é a que impede o posicionamento crítico a qualquer professor, que restringe a liberdade de abordagem dos conteúdos de sua área do conhecimento e que não toque em temas que suscitem a reflexão, como garantia de diretos, cidadania, diversidades cultural e sexual, dentre outros.
O argumento do discurso é moral, para não dizer moralista. Segundo a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, a educação tem como finalidades “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O plano de Bolsonaro reduz essas finalidades apenas à qualificação para o trabalho.
As ideias do candidato do PSL estão baseadas na concepção liberal de educação que, desde os primeiros momentos da hegemonia política da burguesia na Europa, marcaram os sistemas educacionais por uma dualidade estruturante. Nessa lógica, os trabalhadores e os capitalistas devem passar por processos formativos distintos. Enquanto os pobres devem ser preparados para executar trabalhos simples, em sua maior parte manual, os filhos das elites devem ser preparados para o trabalho intelectual: controlar, organizar etc. Aí está a maior marca dos sistemas educacionais de influência liberal: a dualidade estrutural.
Essa ideia não é nova, remete ao fim do século XVIII, quando Adam Smith proclamou que “educação para os trabalhadores sim, porém em doses homeopáticas”. Tanto para os liberais clássicos, quanto para os neoliberais, a educação para os trabalhadores deve ser utilitária para o trabalho. Essencialmente, a educação básica deve se ocupar de ensinar a ler, escrever e calcular. Tudo que estiver para além do desenvolvimento desses aspectos é supérfluo, inútil, perda de tempo.
A hegemonia neoliberal, construída a partir dos anos 1990 no Brasil, não foi capaz de estabelecer padrões mínimos de compreensão nem mesmo para essas áreas prioritárias. Sendo assim, o projeto ultraneoliberal, que desde o governo Temer se apresenta, pretende dar conta disso na marra. É esse o espírito da Reforma do Ensino Médio, aprovada por Temer sem qualquer discussão com a sociedade, e que Bolsonaro pretende aplicar, extirpando qualquer possibilidade de uma educação crítica, transformadora, emancipadora.
A necessidade de formar cada vez mais trabalhadores qualificados e dóceis emerge principalmente das transformações recentes do capitalismo, na qual o trabalho se torna cada vez mais um privilégio (o “privilégio da servidão”, nas palavras de Ricardo Antunes). O pensamento crítico é nocivo à progressiva precarização das relações de trabalho, à terceirização irrestrita, à “pejotização”, à “uberização” e todas as novas formas de superexploração do trabalho, que vêm sendo eufemizadas pela ideologia do empreendedorismo.
Aliás, a ideologia do empreendedorismo é a única com a qual Bolsonaro não se ocupa em combater. Pelo contrário, o plano de governo pretende incentivar. Justo a forma mais perversa de doutrinação feita dentro das escolas públicas na atualidade. Não raro encontrar empresas, startups, ONGs vendendo a ilusão, para os estudantes pobres das redes públicas de ensino, que o sucesso está ao alcance de suas mãos. Num país desigual como o nosso, esse tipo de doutrinação é ainda mais perversa, ao criar a ilusão de que podemos viver em um mundo em que todos serão patrões de si próprios.
Como forma de combater o pensamento crítico, ele propõe ainda expandir a educação à distância (EAD), desde o ensino fundamental, em especial em áreas rurais (porém não faz qualquer menção em como expandir os recursos tecnológicos necessários para implementar tal proposta). Recentemente, em uma transmissão pela internet, disse que o principal objetivo da proposta é reduzir custos com professores, funcionários e estrutura escolar. Bolsonaro quer tirar os estudantes da escola, afastá-los dos professores, impedi-los de terem acesso ao convívio com os demais alunos.
Essa preocupação com os custos pode até parecer algo razoável na visão de um gestor público, no entanto, o candidato não só votou favoravelmente à Emenda Constitucional, que limita os recursos destinados à saúde e educação pelos próprios 20 anos, como também afirma em seu projeto que pretende mudar a educação brasileira com os mesmos recursos aplicados atualmente. Isso significa que não haverá política de valorização salarial dos professores, nem um processo de melhoria das estruturas das escolas. Esses temas sequer são mencionados no programa de governo.
Por fim, o programa bolsonarista não traz propostas claras para o Ensino Superior, mas reportagem publicada no portal Terra deixa claro que Bolsonaro quer instituir a cobrança de mensalidades em universidades federais, interrompendo de vez com o processo de democratização das instituições de ensino superior. Além disso, o candidato já se posicionou contrário à políticas de cotas o que deve dificultar ainda mais o acesso dos filhos da classe trabalhadora à universidade. Isso garantirá o projeto neoliberal de reservar o ensino superior à formação dos filhos das elites.
Não fosse o suficiente, a equipe de Bolsonaro pretende interferir na nomeação de reitores com o claro objetivo de limitar a autonomia universitária. O consultor para assuntos de educação da campanha bolsonarista, Stavros Xanthopoylos, declarou recentemente que pretende cortar recursos das pesquisas do campo das Ciências Humanas, afirmando não ser possível “ter mil pesquisas numa área que, teoricamente, não tem significância nenhuma para o desenvolvimento científico do país em termos de valor intelectual agregado, que vai trazer elementos econômicos e puxar cadeias produtivas, e ter praticamente zero ou pouquíssima coisa nessa área”. O discurso demonstra um evidente desconhecimento sobre a produção acadêmica brasileira, além de abrir as portas para a perseguição do pensamento crítico dentro das universidades.
Um eventual governo de Jair Bolsonaro representará um grande retrocesso à já combalida educação pública brasileira. A responsabilização e criminalização dos docentes será a face mais perversa de um processo que já oprime, explora, agride e adoece os professores. Será a efetivação de um projeto de quebra de confiança completa entre alunos e mestres. A desvalorização e precarização da profissão já imposta pelo projeto educacional neoliberal será legitimada agora por um discurso de ódio aos professores.
É importante que se saiba que nenhuma dessas propostas será implementada sem resistência. Se o projeto bolsonarista fere a nossa existência, o enfrentaremos não só nas urnas, mas num eventual governo.
O projeto de Bolsonaro quer criar uma cultura do ódio, da ignorância, na qual uma mensagem de Whatsapp ou um vídeo postado no Youtube tenha mais credibilidade que a posição de um professor. Os professores são uma ameaça real ao projeto bolsonarista, porque são eles que falam da história, da cultura, que nos ajudam a questionar as injustiças, as opressões e as explorações; que nos apresentam a ciência e o desenvolvimento tecnológico. Tudo isso é uma ameaça ao “mito”. E é por isso que Bolsonaro odeia professores.
* Vítor Bemvindo é professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Edição: Cecília Figueiredo