Sônia Guajajara foi a primeira representante dos povos indígenas a compor uma chapa presidencial na história brasileira. Candidata a vice de Guilherme Boulos pelo Psol no primeiro turno, e agora em campanha pela eleição de Fernando Haddad (PT), ela se tornou uma das principais lideranças indígenas no país. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Guajajara comentou as ameaças feitas pelo candidato Jair Bolsonaro (PSL) aos povos indígenas e outras minorias, e a importância de sua candidatura em um contexto de aumento da violência no campo e floresta.
No último domingo (21), em um vídeo ao vivo exibido para apoiadores na Avenida Paulista, em São Paulo, Bolsonaro ameaçou opositores com "cadeia" ou "exílio". Entre os principais opositores de Bolsonaro estão os que lutam pela reforma agrária e demarcação de terras no país. Completamente aliado ao agronegócio e à bancada ruralista, o capitão reformado do exército tem como um dos principais articuladores de sua campanha o Presidente da União Democrática Ruralista (UDR), entidade conhecidas pelo porte ilegal de armas e organização de milícias privada contra camponeses.
Em seu programa de governo, Bolsonaro traz pontos como a extinção da Fundação Nacional do Índio (Funai), a união do Ministério da Agricultura ao Ministério do Meio Ambiente, e a criminalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Na última semana, outros órgãos ambientais alvos de críticas por Bolsonaro, o Ibama e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), sofreram uma série de ataques. Na sexta-feira (19), agentes do ICMBio ficaram ilhados por sete horas dentro da Floresta Nacional de Itaituba 2, devido a queima de uma ponte que dava acesso à saída. No sábado (20), três carros do Ibama foram incendiados em Buritis (RO), durante a preparação para uma operação.
Na segunda-feira (22), a Articulação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) lançou uma nota em apoio a candidatura de Haddad, repudiando os posicionamentos de Bolsonaro e alertando que o candidato representa a "contramão da democracia" no país. "O candidato declarou, reiteradas vezes, acabar com direitos constitucionais dos povos indígenas e de suas terras tradicionais".
Na terça-feira (22), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) aderiu ao manifesto e produziu outra nota, reiterando que Bolsonaro tem afirmações mentirosas sobre a luta indígena. "Em vídeo que circula nas redes sociais e em entrevista recente, Bolsonaro afirma que demarcações de terras indígenas atenderiam a interesses de outros países e atentariam contra o interesse nacional. (...) Com isso, o candidato tenta colar nos povos indígena a pecha de pessoas não confiáveis, manipuláveis e traidoras do Brasil", afirma o documento.
Para Sônia Guajajara, a vitória de Bolsonaro representaria um "desastre total" e o momento "mais trágico" para os povos indígenas, mas também uma conjuntura de articulação política.
"Nenhum governo nunca respeitou ou priorizou os povos indígenas, nunca fomos prioridade. Claro que agora é muito mais assustador porque o que se prenuncia com a candidatura de Bolsonaro é a volta de uma ditadura, de imposição e uma expressão de intolerância muito maior do que o que vivemos até hoje. Vejo sim um perigo muito grande para nós mulheres, para nós indígenas, para a população negra, pobres e da periferia, todo nós que somos a diversidade. Tudo que é diversidade não é reconhecido por ele, ele nos vê como intrusos ou pessoas que não merecem estar aqui. É um momento muito perigoso. Mas também um momento em que nos juntamos para fazer esse enfrentamento. Tudo que conquistamos foi com muita luta, e nesse momento nos reorganizamos, não só enquanto povos indígenas, mas com tantos outros movimentos que também lutam em defesa de seus direitos para fazer esse enfrentamento conjunto", afirmou.
Nesse sentido, Guajajara ressaltou que sua candidatura veio em hora certa para contrapor o momento "obscuro e tenebroso" que vivemos na história brasileira. "A gente conseguir compor uma chapa presidencial nesse momento para fazer essa disputa já foi um avanço. Trazermos nossas pautas para o centro do debate eleitoral foi outro avanço estando ali, enquanto indígenas, debatendo para além de nós e tratando de outras pautas. Porque não tratamos só da questão indígena, trazemos os povos tradicionais, os quilombolas, as mulheres, e todos eles que sempre estiveram à margem do processo", afirmou.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato -- Qual seria o impacto de um governo Bolsonaro para os povos indígenas? Como as lideranças têm se posicionado frente aos recentes ataques à militância e também aos órgãos ambientais?
Sonia Guajajara -- É um momento muito dramático na história de nosso país. Para nós, povos indígenas que já vivemos todos os períodos difíceis da história, a invasão europeia, o colonialismo, e a ditadura militar, que foi um período muito cruel para nossos povos, muita morte, ataques, extermínio.
Nesse momento estamos vivendo sob uma Constituição cidadã. Conseguimos escrever logo depois da Ditadura um documento que garantia os direitos territoriais dos povos indígenas, isso nos trouxe a esperança de que pudéssemos conseguir a demarcação de nossas terras, inclusive a Constituição estabeleceu um prazo de até cinco anos, a partir de 1988, para que todos os territórios estivessem demarcados.
Mas o que se seguiu foi uma forte articulação do poder econômico e político para inviabilizar essas demarcações. Houve alguns avanços, mas ainda há um vazio muito grande. E não só há essa pendência, como conflitos diários. Entretanto, estávamos vivendo esse processo democrático, que nos permite lutar, e fazer essa reivindicação por ser um direito constitucional, mesmo que para a gente seja um direito originário que vem antes da Constituição, mas ela garante e nos respalda. Todas essas manifestações públicas da posição do Bolsonaro para nós é o mais trágico que pode haver nesse momento. É um desastre total com a vida dos povos indígenas.
Quando ele diz que não vai demarcar nenhum centímetro da terra indígena, e questionado diz que na verdade não demarcaria nenhum milímetro, segue dizendo que a Funai é um órgão totalmente desnecessário, diz que vai unir o Ministério do Meio Ambiente com o da Agricultura, órgãos opostos, fala que vai tirar o Brasil do maior tratado internacional sobre a questão do clima, o Acordo de Paris; tudo isso junto declara sua posição de decreto da extinção dos povos indígenas no Brasil.
É um momento de apreensão mas também um momento em que nos juntamos para fazer esse enfrentamento. Tudo que conquistamos foi com muita luta, e nesse momento nos reorganizamos, nós só enquanto povos indígenas, mas com tantos outros movimentos que também lutam em defesa de seus direitos para fazer esse enfrentamento conjunto. É a hora de dar as mãos, superar o medo e o desespero, botar o pé no chão e seguir em frente.
A liderança Ailton Krenak deu uma declaração nesta semana dizendo que os povos indígenas resistem há 500 anos, e que na verdade ele está preocupado com os brancos nesse momento. Você concorda com essa fala?
Quando a gente diz que se preocupa com os brancos estamos convocando a sociedade brasileira a entender o modo de vida dos povos indígenas e conectar com suas próprias vidas.
Sempre estivemos na linha de frente da resistência, mas muita gente até hoje não conseguiu compreender o papel dos povos e dos territórios indígenas para quem está na cidade. Há essa necessidade de compreensão de que toda a luta que fazemos, para regularizar e proteger os territórios, tem todo o sentido também de garantir a vida de quem não está lá, está na cidade.
Já resistimos a toda essa violência em tantos momentos difíceis, agora é uma continuidade. Nenhum governo nunca respeitou ou priorizou os povos indígenas, nunca fomos prioridade. Claro que agora é muito mais assustador porque o que se prenuncia com a candidatura de Bolsonaro é a volta de uma ditadura, de imposição e uma expressão de intolerância muito maior do que o que vivemos até hoje.
Quando ele diz que ou será exilado ou preso aqueles que se opõem ao que ele prega, está chamando para o confronto. É isso que pretendemos fazer, mas isso pode custar muita vidas, pode custar muito caro para a gente. Podemos temos que juntar as forças nessa luta.
Em uma entrevista na Jovem Pan te perguntaram qual era a necessidade de demarcar terras para uma população indígena tão pequena proporcionalmente à população brasileira. Como você explicaria para as pessoas a importância da manutenção do modo de vida indígena?
Há ainda uma ignorância, um desconhecimento muito grande em aceitar ou acreditar que existem indígenas no Brasil. Isso vem também por conta do próprio sistema educacional que não discute a questão indígena. A pauta indígena é ausente do sistema educacional. Quando se discute sobre povos indígenas na escola, mesmo na universidade, isso é tratado como passado, os índios do passado. Não houve nem mesmo a atualização dos conceitos.
Na universidade dizem "os índios viviam, andavam, moravam", não trata do presente, dos conflitos que enfrentamos hoje, toda a realidade da presença indígena hoje. Mesmo com o extermínio, nós resistimos e hoje temos 305 povos diferentes, que falam 274 línguas diferentes, isso a população brasileira não sabe, não se aprende na escola e era o mínimo que teria que ser dito para que as pessoas soubessem naturalmente.
Se não sabem o básico, muito menos da importância que tem os territórios indígenas e de compreender que o próprio modo de vida dos povos indígenas, por si só, protege esses territórios. Esses territórios que garantem a chuva, o equilíbrio climático, o ar. A floresta protegida, os biomas, como o Cerrado que está totalmente ameaçado, é o que garante a chuva que chega nos reservatórios e abastece a torneira das pessoas. As pessoas não entendem que essa água vem de algum lugar em que há pessoas lutando para que as nascentes sejam protegidas.
Isso custa uma luta política. Então é urgente que as pessoas compreendam e acabem com o distanciamento entre as pessoas e o meio ambiente, entender que estamos interligados e que os povos indígenas têm feito seu papel. Já imaginou pensar uma política pública de investimento para a proteção desses territórios? Hoje fazemos isso de forma gratuita, nosso próprio modo de vida protege, e sabemos a importância disso e milenarmente estamos dizendo que a mãe natureza é um bem comum que não serve só para nós. Então a causa indígena tem que ser entendida como uma causa humanitária e civilizatória fundamental para o planeta.
Como você avalia a importância da sua candidatura como a primeira representante indígena que compôs uma chapa presidencial?
Foi muito importante, uma participação muito significativa. Eu tomei a decisão certa de nesse momento assumir esse lugar, porque é um momento difícil, obscuro e tenebroso que vivemos, não só na política, mas na nossa história, e nesse momento a gente conseguir compor uma chapa presidencial para fazer essa disputa já foi um avanço.
A gente trazer nossas pautas para o centro do debate eleitoral foi outro avanço, e estamos ali, enquanto indígenas, debatendo para além de nós e tratando de outras pautas. Porque não tratamos só da questão indígena, trazemos os povos tradicionais, os quilombolas, as mulheres, e todos eles que sempre estiveram à margem do processo.
Então foram pautas que vieram com muita força durante toda essa campanha, e obrigatoriamente os outros candidatos tiveram que pontuar de forma mais consistente esses temas que sempre tiveram um lugar secundário nessa pauta eleitoral. Então a repercussão está sendo muito positiva, muita gente reconheceu a importância desse momento, valorizou, e continua apostando que é possível, que precisamos seguir nessa linha para trazer toda essa experiência milenar de convívio com a mãe natureza que temos, e também com outras pessoas, pelo princípio da coletividade. Então minha candidatura marcou esse momento da nossa história.
Nessa reta final das eleições as propagandas de Bolsonaro têm se voltado para as mulheres, na tentativa de mudar sua imagem de misógino. Como você acha que esse governo impactaria as mulheres no geral?
É lamentável a gente perceber que o Brasil está se revelando esse país machista e racista, porque o que ele representa hoje é uma violência muito grande, ataques não só aos direitos mas à nossa própria vida e liberdade.
Não tenho dúvida nenhuma que todo esse comportamento violento dos últimos dias tem a ver com o respaldo que as pessoas estão sentindo para expressar todo seu ódio. Antes as pessoas tinham receio de expressar ofensivas e hoje está banalizado. Estão se sentindo muito a vontade porque há um candidato que pode assumir a presidência e respalda isso, então se sentem muito a vontade para agredir, matar, há casos concretos de apoiadores de Bolsonaro fazendo isso.
Vejo sim um perigo muito grande para nós mulheres, para nós indígenas, para a população negra, pobres e da periferia, todo nós que somos a diversidade. Estamos no bojo da diversidade e tudo que é diversidade não é reconhecido por ele, ele nos vê como intrusos ou pessoas que não merecem estar aqui. É um momento muito perigoso.
Bolsonaro deixa muito claro que defende a posse de armas para qualquer cidadão. No primeiro turno, no entanto, tivemos outros candidatos, como João Amoedo (Novo) e Geraldo Alckmin (PSDB) que prometeram facilitar o porte de arma no campo, onde dezenas de camponeses e indígenas são assassinados. Como você enxerga essa proposta?
O conflito no campo tem aumentado muito. Nesse governo mesmo, por conta da disputa de terras e os acordos com o agronegócio, com as mineradoras, todo o interesse em explorar os territórios para o crescimento econômico, para isso vale tudo.
Em 2016 foram 117 assassinatos indígenas, e estudam mostram que foram em decorrência de conflitos. No ano passado foram 110. Não houve uma redução porque houve também uma criminalização maior de pessoas que estão na luta para garantir o território. Se arma a população no campo isso tende também a piorar muito mais.
É um equivoco todos esses que defendem o armamento no campo para a segurança. De forma alguma vai trazer tranquilidade, isso vai só piorar, e se todo mundo tem liberdade para se armar, também vão se sentir livres para matar. Então somos totalmente contra o armamento.
Edição: Diego Sartorato