A votação deste domingo, 28, que elegeu Jair Bolsonaro para presidir o Brasil nos próximos quatro anos, coloca uma nuvem cinzenta sobre o país, a gerar preocupação entre todos os que comungam dos preceitos democráticos e do significado concreto de direitos sociais conquistados através de gerações. Diversos analistas têm se debruçado na explicação da conjuntura que levou ao ascenso exitoso de uma candidatura calcada no discurso de ódio. E esse é uma tema que seguirá exigindo atenção criteriosa.
Igualmente, um assunto que requererá devido tratamento é a questão: para onde irão as condições de vida e trabalho, os direitos econômicos, sociais e trabalhistas, em uma economia capitalista que historicamente é marcada pela superexploração do trabalho?
É de conhecimento que o futuro presidente do país – que não recebeu o sufrágio de seis em cada dez brasileiros – declarou que o povo “terá que escolher entre ter emprego ou ter direitos”. O que em bom português seria um oxímoro, no discurso em exame é uma disjuntiva tomada como algo natural. Entretanto, ninguém bem informado ignora que a economia de mercado encontra-se em crise. E que as distintas respostas às crises – nem hoje, nem no passado – são neutras. Que respostas o novo governo adotará em relação à crise em andamento e com que implicações sobre o mundo do trabalho?
Segundo dados da CEPAL, órgão das Nações Unidas, o Brasil apresenta a segunda maior taxa de desemprego na América Latina, atrás somente do Haiti, país dilacerado pela guerra civil e pelo rastro de uma ocupação militar internacional que não solucionou os problemas do país caribenho. No Brasil, o índice de desemprego entre os jovens alcança 30%. O economista Paulo Guedes, um dos coordenadores do programa de Bolsonaro e que assumirá o Ministério da Fazenda a partir de janeiro, acenou com a proposta da Carteira de Trabalho “verde e amarela”. Sob esta, os jovens entre 20 e 25 anos “optariam” por contratos precários de trabalho, com ainda menos direitos em relação aos que restaram após a sanção da Lei n. 13.467/17, a qual alterou sem debates 200 artigos da CLT e que avulta como principal legado do governo Temer. Não bastasse os jovens das famílias da classe trabalhadora representarem um número avolumado do exército industrial de reserva – aquele contingente da população em busca de um posto de trabalho –, se concretizada a medida em questão se criará uma subcategoria de trabalhadores (e tudo em nome das cores nacionais), precarizando de forma redobrada seus direitos e, por tabela, exercendo efeito deletério pressionando para baixo as condições de trabalho do conjunto dos assalariados.
Outro direito na berlinda são os reajustes salariais. Até o final do primeiro ano de mandato do novo governo, deverá ser votada no Congresso a fórmula de correção do salário mínimo para o próximo período. A vigente leva em consideração a inflação do ano anterior pelo INPC, acrescida da variação do PIB de dois anos antes. Ela entrou em vigor em 2007, com validade até o final de 2019. A imprensa de negócios vislumbra três cenários possíveis: 1) a renovação do critério atual; 2) sua substituição pela mera correção da inflação, sem acrescer variações do PIB para cima; 3) o INPC combinado a outro indicador – como PIB per capita. Ora, em condições de desemprego crônico e estrutural e de transição demográfica, com o agravante de sermos uma economia marcada pela dependência tecnológica, substituir variações do PIB pelo PIB per capita nessa matéria tende a atuar, no final das contas, como um redutor na fórmula dos reajustes salariais. Se vingar este critério ou o segundo, que desconsidera por completo o uso do PIB no cálculo do reajuste, será uma das medidas concretas cumprindo a promessa do candidato vitorioso a “tirar o Estado do cangote” [sic] do empresariado. Mas em nome de qual país? Os 32 milhões de assalariados que ainda conservam emprego formal sentirão na pele. E, mais ainda, o sentirão os 9,2 milhões de brasileiros que, dentre os que vivem de salário (ou aposentadoria), recebem apenas 1 salário mínimo como renda mensal.
Um terceiro direito social esgrimido e que será matéria imediata – a dúvida é se, ainda na transição, ou se depois da posse – é o marco regulatório sobre saneamento básico. Em abril deste ano, foi editada a Medida Provisória 844/2018, a MP do Saneamento Básico, que deve ser apreciada pelo Congresso. Na esteira de exigências dos acordos de recuperação fiscal assinados ou em tratativas com estados da Federação, a União impõe a privatização ou semiprivatização das companhias estaduais de água e saneamento como contrapartida para fazer caixa. A propósito, ao fim de 2017 o governo federal lançou via BNDES edital visando a privatização das empresas públicas estaduais ou a delegação de seus serviços essenciais via parcerias público-privadas. O banco público sendo utilizado para alienar patrimônio público... De acordo com dados oficiais, 52% da população brasileira vive sem coleta de esgoto. E do esgoto que é coletado, apenas 45% de seu volume recebe tratamento. Como pode ser crível que a concessão de serviços básicos como saneamento – indispensável e de precípuo caráter público para a efetivação de um direito fundamental como a saúde, assegurada no artigo 6o da Constituição Cidadã de 1988 – se tornarão de melhor qualidade e mais acessíveis quando se passar a cobrar por eles visando ao lucro? Como se dará o pacto federativo que o candidato Bolsonaro mencionou no discurso lido às emissoras de TV, após a divulgação do resultado das urnas? Como se portarão os governos estaduais eleitos no torvelinho de sua campanha?
Um quarto direito em xeque é o FGTS. Cumpre assinalar que, originalmente, o FGTS foi instituído como medida compensatória para justificar a retirada de um direito, durante a ditadura empresarial-militar. Naquele momento, se alterou a legislação trabalhista tornando mais fácil a demissão de trabalhadores, a fim de ampliar a rotatividade da força de trabalho, com mais um elemento pressionando para baixo os salários, de modo a elevar a taxa de mais-valia e reduzir o tempo de rotação (giro) do capital, elevando assim a taxa de lucro. Feita a ressalva, o FGTS, desde seu reconhecimento na Constituição de 1988, compõe o conjunto de instrumentos da proteção social, gerindo um montante de recursos que equivale a uma forma de salário indireto, que pode ser acessado em circunstâncias de rompimento do vínculo pelo empregador (“demissão sem justa causa”, na linguagem da legislação) ou para aquisição da casa própria e outras circunstâncias especiais. Eis, então, que a equipe econômica de Bolsonaro cogita alterar o funcionamento do FGTS, autorizando a aplicação de seus recursos no mercado de capitais, alegadamente para valorizar o montante do Fundo e aumentar seu retorno para os usuários. Com numerosos casos de quebradeiras de fundos de outra natureza, como os fundos de pensão – vide caso Enron, nos EUA; caso Aeros (Varig) no Brasil – o que esperar de uma contrarreforma do FGTS que aponte na direção de sua capitalização na volátil e insegura economia do capital fictício?
Um quinto direito ameaçado é o da aposentadoria. Uma das principais pautas do Programa Ponte para o Futuro, agenda de contrarreformas por trás do impeachment ilegítimo que alçou Temer à cadeira de Presidente, a Reforma da Previdência não pôde ser aprovada em 2017. Como engodo, o governo Temer lançou mão da intervenção federal no Rio de Janeiro, durante a qual, pela regra da Constituição, não se pode votar emendas constitucionais como é a PEC 287. Isto ajudou a maquiar provisoriamente a impopularidade do ataque aos direitos da aposentadoria da maioria da população, que não desfruta de privilégios. Ao registrar seu voto em Brasília, o vice de Bolsonaro, Mourão, declarou que a reforma da Previdência será a prioridade número um do novo governo. E assim o vaticina o economista Paulo Guedes, não sem o apoio da imprensa oligopolista em seus editoriais e falas de comentaristas.
Todo o exposto, agudizado pela Emenda Constitucional 95 (PEC do “teto dos gastos”) implicando cortes violentos dos recursos para políticas sociais na Saúde, Educação e Assistência Social, compreende expedientes que atentam contra o fundo de consumo e o fundo de vida dos trabalhadores. E tendem a incrementar a superexploração do trabalho, isto é, a violação do valor de força de trabalho – seja diretamente nas relações de produção, seja através das relações de distribuição/apropriação (redistribuição regressiva da renda, resultando na expropriação direta e indireta do salário e condições de vida). E isto num país cuja economia, em seu papel subordinado na divisão internacional do trabalho, provoca um divórcio entre a estrutura produtiva e as necessidades das massas, as necessidades do povo.
O momento que se vive exigirá a solidariedade de todas as forças democráticas em defesa dos direitos. E recordar que o Estado democrático de direito e os direitos políticos, econômicos, sociais e trabalhistas não foram obra do acaso, mas conquistas da humanidade. O dilema humanismo e barbárie e a defesa da democracia em face do ódio, como colocou o ex-ministro Tarso Genro na última semana, em ato contra o fascismo em Porto Alegre, encontram-se na ordem do dia. Nosso terreno é o da luta democrática. Os tempos serão difíceis. Do nosso lado, temos a razão, a ciência, os valores humanistas de gerações e a solidariedade de classe. E a vontade de 47 milhões de brasileiros que se pronunciaram em defesa das liberdades democráticas, além de muitos outros que mais cedo ou mais tarde despertarão para o que está em jogo.
*Professor do Departamento de História da UFRGS
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira