Cinema

"Bolsonaro é uma ameaça para esse tipo de filme", diz diretor de "Excelentíssimos"

O documentário de Douglas Duarte que retrata o processo de golpe contra Dilma Rousseff entra em cartaz no dia 22

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Votação do Impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados é um dos processos acompanhados pelo documentário
Votação do Impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados é um dos processos acompanhados pelo documentário - Foto: Reprodução

Na próxima quinta-feira (22), entra em cartaz nos cinemas brasileiros o documentário "Excelentíssimos", mais uma produção que retrata o golpe parlamentar e midiático que retirou do poder a ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016. O filme, dirigido por Douglas Duarte, já estreou em eventos como o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em setembro, e o Festival do Rio, no último final de semana. 

O filme retrata os bastidores do que chama de "a maior crise política brasileira desde a redemocratização". Ao longo de duas horas, expõe, principalmente, o esforço dos deputados federais e de partidos como PSDB e MDB em deslegitimar e criminalizar o mandato da primeira presidenta brasileira. Um dos diferenciais do documentário é escancarar que esse processo teve início justamente após o resultado da eleição presidencial de 2014. 

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Duarte conta que, no início, o filme tinha como objetivo fazer um retrato do processo de Impeachment no Congresso Nacional, mas que a cada acontecimento, foi se expandindo.

"Chegamos antes das coisas realmente virarem o tsunami que viraram, então pegamos o processo na Câmara dos Deputados, onde ele nasce, e, na minha cabeça, onde a derrubada de Dilma é decidida. Retratamos a batalha sendo perdida. Em certo momento, decidimos que tínhamos que apresentar o que era mais forte, o filme se estrutura nos fatos mais importantes: a decisão do PSDB de ganhar na marra a eleição de 2014, de ter um terceiro turno, o convencimento do PMDB a fazer parte disso, e que foi isso que levou ao relevo que Bolsonaro teve", afirmou. 

Sobre a eleição do Deputado Federal do PSL e os riscos de seu discurso de ódio e conservadorismo em relação à liberdade de expressão no país, o diretor de Excelentíssimos é contundente: afirma não ter dúvidas de que Bolsonaro representa uma ameaça para "esse tipo de filme". "Não tenho dúvidas de que ele não quer que esse tipo de filme continue a acontecer e não tenho dúvidas de que ele acha que é indevido ter dinheiro público neste filme. Mas [o financiamento] não é o cofre de Bolsonaro, com o qual ele decide imperialmente em quem investe, é um dinheiro que vem da própria atividade audiovisual. Como ela está impregnada com uma visão progressista, acho que ele fará de tudo para fragilizar isso", afirmou. Como a maior parte do cinema brasileiro, o documentário, produzido pela Esquina Filmes, foi financiado por órgãos públicos de apoio à cultura. 

Apesar da ameaça, Duarte acredita que mais documentários e filmes sobre os recentes processos políticos brasileiros deveriam estar sendo produzidos. Ele destaca a ausência histórica de materiais audiovisuais sobre o Impeachment do ex-Presidente Fernando Collor de Mello, ou mesmo sobre o processo das Diretas Já durante os últimos anos da Ditadura Militar no Brasil. "Acho ótimo que daqui a 15 anos a minha filha, que hoje tem 9, vai poder olhar para esses anos em que ela estava crescendo e ter o meu documentário, o da Maria Augusta Ramos, o da Petra Costa, o da Anna Muylaert para poder ver essas pessoas. Claro que ela sempre poderá ver nos livros de história, mas a gente não controla como eles estarão daqui a um tempo. Eu, por exemplo, quando estava na escola, li sobre a revolução de 1964. Então é muito bom ter uma pluralidade de olhares, acho que os documentários e o cinema podem trazer isso", afirmou. 

"Excelentíssimos" reune imagens de arquivo, filmagens de bastidores e entrevistas inéditas, conduzidas ao longo do filme por meio da locução realizada pelo próprio diretor. Confira o trailer do filme.

Entrevista Completa:

Brasil de Fato -- Estão sendo produzidos muito documentários sobre o processo do golpe que retirou a ex-presidenta Dilma Rousseff. Porque acredita que o assunto tem sido tão retratado por cineastas?

Douglas Duarte -- Não acho que estão sendo feitos muitos documentários sobre o tema do Impeachment, da derrubada da Dilma e da ascensão de Bolsonaro, acho que estão sendo feitos poucos documentários. Temos que mudar nossa cabeça a respeito disso.

Eu vivi processos na minha adolescência, mas não temos um documentário sobre o Impeachment de Collor, os escândalos dele. Ou por que não temos um documentário sobre o processo das Diretas Já? É um buraco na nossa formação de identidade. Patrício Guzmán, um diretor chileno de quem gosto muito, fala que um país sem documentários é como uma família sem álbum de retratos. É isso.

Acho ótimo que daqui a 15 anos a minha filha, que hoje tem 9, vai poder olhar para esses anos em que ela estava crescendo e ter o meu documentário, o da Maria Augusta Ramos, o da Petra Costa, o da Anna Muylaert para poder ver essas pessoas. Claro que ela sempre poderá ver nos livros de história, mas a gente não controla como eles estarão daqui a um tempo. Eu, por exemplo, quando estava na escola, li sobre a revolução de 1964. Então é muito bom ter uma pluralidade de olhares, acho que os documentários e o cinema podem trazer isso.

Nesse sentido, pensando em todos esses filmes que estão sendo feitos, eu queria que você comentasse qual olhar escolheu dar para o seu documentário. Na minha percepção você escolheu retratar o pré-processo de Impeachment, tendo como base a eleição de 2014. Mas o que diferencia o seu ponto de vista?

Temos vários documentários sobre o Impeachment já prontos. Temos um chamado "Um dia de 53 horas", feito em Brasília, só sobre o dia da sessão. Um documentário horrível feito por um canal de Youtube chamado "Brasil Paralelo", que quase tenho vontade de não chamar de documentário, porque é um panfleto de propaganda de direita, temos o filme da Guta [Maria Augusta Ramos], do qual gosto muito, "O Processo". Temos um filme do Boca Migotto, um cineasta do Sul que fez o "Já Vimos esse Filme". E temos o "Excelentíssimos".

Nós começamos a filmar como um retrato do Congresso Nacional. Chegamos antes das coisas realmente virarem o tsunami que viraram. Então pegamos o processo na Câmara dos Deputados, onde ele nasce, e na minha cabeça, onde a derrubada de Dilma é decidida. No documentário da Guta, os parlamentares petistas e o advogado da Dilma, José Eduardo Cardozo, já tratam aquilo como uma batalha perdida. O que nós retratamos é a batalha sendo perdida, ou sendo ganha, dependendo de que lado você acompanha.

A gente filmou muito nos parlamentares que queriam que o Impeachment acontecesse, para tentar entender pela ótica deles o que eles queriam. Então a ideia do filme era não apenas flagrar o teatro do poder, mas também ligar os pontos factuais e enfileirar os fatos, mostrar causos. Quase como uma grande teoria da conspiração, mas muito apoiado em fatos, documentos; tem Fernando Henrique falando, Carlos Sampaio falando, os parlamentares pondo a cara no que estão dizendo.

Então tem essa dimensão do documento histórico, uma maneira de fazer documentário. Isso leva a decisões estéticas. A Guta é uma cineasta que gosta de fazer filmes muito espartanos, com a câmera registando, observando, sem fazer entrevistas. Eu gosto dessa abordagem também, mas acho que cada filme pede uma abordagem diferente. Para o "Excelentíssimos" temos arquivo, trilha, locução, narração, tudo para criar um todo diferente. Com o mesmo material era possível fazer vários filmes diferentes, esse é o que escolhemos fazer.

Algumas críticas o acusam de ter se isentado muito durante o documentário, em comparação com outros documentários. Você discorda?

Eu discordo porque acho que tem que ser meio tapado para não ver que eu acho um absurdo o que está acontecendo. Se você se fixar só na minha locução, no começo eu digo que ainda se questiona hoje em dia se foi Impeachment ou golpe. Isso acontece no primeiro minuto do filme, ainda tem duas horas nas quais eu tento mostrar por A + B porque que o que aconteceu pode até seguir os ritos formais da Constituição brasileira, mas não é democracia. Acho que não tem neutralidade no filme, eu não busquei neutralidade, só quis me ater a fatos. Não quis fazer um panfleto, porque não era necessário.

Acredita que essa estratégia menos panfletária, se atendo aos fatos, é algo que a esquerda deve aprender para dialogar com a população que elegeu Bolsonaro?

Não sei. Para mim é o que funciona, ao mesmo tempo quando vemos o Brasil, o resultado dessa eleição que tivemos é basicamente a prova de que argumento, lógica e conversa viraram fora de moda, quase. Minha primeira reação seria dizer que sim, precisamos sair dos slogans e mostrar as estruturas trabalhando. Ao mesmo tempo, Bolsonaro ganhou com slogan, frases feitas, "Ta ókay?", "tem que ver isso aí".

Não sei o que vai funcionar.

Acho que estamos trabalhando com a representação da realidade, isso inclui imprensa, historiadores, documentaristas, precisamos pensar sobre esse assunto. Sobre o que funciona. Porque algo que ficou muito claro para mim é que as cartas estavam todas em cima da mesa, os lances que foram acontecendo para a derrubada da Dilma estavam muito claros desde o início. Ninguém escondeu que queriam derrubá-la. Nem o PSDB, nem o PMDB. Se era assim, porque não agimos de acordo? A gente que tem uma perspectiva progressista e de defesa inconstitucional da democracia.

O que sei é que nesse período berramos muitos slogans. "Não vai ter golpe", "Ele não", "Não vai ter Copa", antes. Estou longe de me opor a isso, acho que resistência é resistência, tem que ter. Mas acho que só com isso não se ganha o jogo. Temos que pensar o que além disso ganha o jogo.

Acredita que seu documentário também é uma forma de denúncia internacional dessa crise política?

Eu acho que contribui para uma denúncia internacional, sim. Dito isso, eu queria muito que a imprensa nacional fosse tão consciente do que está acontecendo no país quanto a imprensa internacional. Eu gostaria muito de ler na grande imprensa brasileira o tom de análise que vejo em qualquer jornal responsável e sério lá fora, na Europa, nos Estados Unidos.

Os correspondentes lá são experimentados, alguns moram há dez anos no Brasil, antes disso cobriram guerras em vários lugares do mundo. Eles olham para essa situação e veem o absurdo que ela é, veem que botamos um idiota na presidência. Que temos que respeitar a instituição presidencial, mas que isso, na minha cabeça, inclui dizer que elegemos um idiota para a presidência. Ele é um idiota. A imprensa internacional vê isso. Se a imprensa nacional fica pisando em ovos, acho que isso diz mais sobre essa imprensa do que sobre a situação.

Você acredita que no governo de Bolsonaro artistas, cineastas, documentaristas que se posicionam estarão ameaçados com censura, seja uma censura financeira, com cortes de financiamento público? Acredita que pode ser ameaçado?

Eu não tenho dúvidas de que Bolsonaro é uma ameaça para esse tipo de filme. Não tenho dúvidas de que ele não quer que esse tipo de filme continue a acontecer, e não tenho dúvidas de que ele acha que é indevido ter dinheiro público nesse tipo de filme. Ele já deu diversas mostras de que ele não é um sujeito do diálogo e da liberdade de expressão, e que está disposto a usar o dinheiro público para isso.

No dia da posse dele ele disse que a Folha de S.Paulo não teria verba publicitária se continuasse se comportando como está se comportando. Se eu fosse pedir dinheiro ao Bolsonaro, ele provavelmente diria que eu não teria verbas. Ele ignora, como ignora quase todas as coisas, que esse dinheiro não é dele. Não é o cofre do Bolsonaro, que decide imperialmente em quem investe, é um dinheiro que vem da própria atividade audiovisual. Mas como ela está impregnada de uma visão progressista, acho que vai fazer tudo que pode para fragilizar isso.

De outro lado, temos que o dinheiro do cinema brasileiro vem praticamente todo das empresas de telecomunicações. Nesse frigir de ovos, quem você acha que Bolsonaro prefere, os cineastas que falam mal dele, ou as empresas de telecomunicação que já devem estar pressionando ele para parar de pagar o imposto. Acho que o cenário que temos pela frente é bem preocupante. 

Edição: Diego Sartorato