O futuro governo de Jair Bolsonaro (PSL) sofre críticas pela pressão que estimulou a saída dos cubanos que atuam no programa Mais Médicos. A retirada dos médicos foi anunciada por Cuba na quarta-feira (14), após o governo do país caribenho considerar a decisão de Bolsonaro de modificar os termos e condições de colaboração da iniciativa "ameaçadora"e "depreciativa". Um aspecto pouco discutido, no entanto, é o perfil das pessoas que ficarão desassistidas pelo vácuo deixado com a saída de 8.469 médicos, que atuam, principalmente, em regiões periféricas do país.
Para a ex-supervisora do programa no Rio de Janeiro, Ana Marta da Silva Santos, a ação do governo Bolsonaro pode ser considerada racista, pois impactará, majoritariamente, a população negra.
"Quem temos de mais vulnerável e que sem dúvida ficará sem essa assistência? Essa maioria negra, a mãe de dez filhos em uma comunidade, a mãe que convive com o tráfico de um lado e a milícia do outro, a avó que criou vários netos e não conseguiu garantir que eles seguissem um caminho de formação e superação, e ou já perdeu alguns para o Estado genocida que mata pretos, pobres e periféricos. Conseguimos ter muito visível que há uma construção de desassistir os que foram sempre desfavorecidos nesta população brasileira: a comunidade negra, o povo que desde o Brasil colônia teve o que sobrou, as migalhas. Na saúde é o mesmo", afirmou, em entrevista ao Brasil de Fato.
Para Santos, é inviável preencher a lacuna deixada com a saída dos cubanos com os médicos brasileiros, solução encontrada pelo Ministério da Saúde. Um edital com as vagas que estão sendo deixadas pelos profissionais de Cuba será publicado nesta terça-feira (20), de acordo com a pasta.
"Eu jamais poderia dizer que não dará certo, porque eu quero que dê. Pelas irmãs e irmãos negros que estão lá e precisam ter acesso, resolver sua dor física, emocional. Mas, infelizmente, o número de brasileiros não é compatível, essa conta não fecha. Existe uma ilusão de que assumiremos esses espaços. Mas mesmo se todos os médicos brasileiros assumissem ficaríamos doentes, porque trabalharíamos em duas, três cidades, não iríamos dormir ou comer, trabalhar 24 horas por dia", lamentou.
Negra e baiana, Ana Marta viveu em Cuba por sete anos, onde estudou medicina. Após a graduação, de volta ao Brasil, trabalhou na gestão estadual de saúde na Bahia e se especializou em medicina da família em Fortaleza. Realizou a revalidação de seu diploma na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde fez sua residência. Trabalhou na supervisão do programa Mais Médicos no Rio de Janeiro em 2015 e 2017, onde fez o acolhimento dos médicos que vieram ao Brasil e realizou a tutoria do programa. Pesquisadora da questão da saúde da população e dos profissionais negros na medicina, ela destaca que o tratamento dispensado aos próprios cubanos, nos anos em que atuaram no país, também representa o racismo institucional.
"A estrutura social em Cuba é distinta. Ter negros e brancos fazendo medicina é uma coisa muito natural. Aqui sabemos quem são os privilegiados, quem usa as cadeiras das universidades, onde as faculdades de medicina preparam realmente filhos da elite. Então, ao se depararem com aquela quantidade de médico negros, trataram como foi tratado o primeiro grupo que chegou. Gritaram em Fortaleza que eram macacos, que uma médica tinha cara de empregada doméstica. Isso porque os médicos cubanos tem a cara do povo cubano, assim como nós médicos negros brasileiros temos a cara do povo brasileiro", disse.
Em uma pesquisa publicada em 2014 pelo Laboratório de Análises Econômicas, Históricas Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ) mostrou que a população negra corresponde a apenas 17,6% do total de médicos no país. Já dados da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (Seppir), que integra Ministério dos Direitos Humanos - ameaçado de extinção pelo governo de Bolsonaro -, mostram que 70% dos usuários do SUS são negros.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Por que a senhora acredita que a retirada dos Médicos Cubanos do Brasil pode ser considerada uma ação racista?
Nós temos uma conduta hoje das pessoas que assumirão o governo daqui a pouco, e de muitas que já nele estão desde o golpe, que é xenofóbica, racista e machista. Na condição de tutora do programa eu ouvi isso de médicos, por ser totalmente defensora desses médicos que deixaram suas famílias para atuar no Brasil. Eles falavam com muita dificuldade desse sentimento e da ingratidão que eles viam em muitas pessoas. Um médico disse que em pleno Dia do Médico não recebeu um telefonema de um Secretário de Saúde ou de alguém que fazia parte da equipe da gestão municipal. Isso não é comum. Não é que seja indispensável, mas é cordialidade, isso se vê muito em Cuba. Eles se sentiam assim, desassistidos, desamparados e sabiam que era pela condição de serem cubanos.
A estrutura social em Cuba é distinta. Ter negros e brancos fazendo medicina é uma coisa muito natural. Aqui sabemos quem são os privilegiados, quem usa as cadeiras das universidades, onde as faculdades de medicina preparam realmente filhos da elite. Então, ao se depararem com aquela quantidade de médico negros, trataram como foi tratado o primeiro grupo que chegou. Gritaram em Fortaleza que eram macacos, que uma médica tinha cara de empregada doméstica. Isso porque os médicos cubanos têm a cara do povo cubano, assim como nós médicos negros brasileiros temos as caras do povo brasileiro e não de um percentual pequeno, minúscula, que é essa galera que força para ser a elite brasileira.
Isso [a retirada dos cubanos] é racismo sim contra o povo brasileiro, porque ouvimos vários depoimentos de pessoas que tiveram, pela primeira vez, seus corpos tocados por um profissional médico. Tivemos relatos de pacientes que nunca haviam sido escutados em uma consulta, às vezes nem tchau recebia. Esse diferencial de assistir uma comunidade desassistida pelos seus próprios profissionais é o que diferencia e garante a qualidade do profissional cubano. Claro que sabemos que as corporações constroem outras pontes para discutir o que não é significativo para o povo brasileiro.
Lembro que no início do programa diziam "o povo quer um médico, quer seja cubano ou marciano". É isso, as pessoas precisam de um médico, de uma médica, e se eles têm a cara dessa pessoa que precisa ser assistido, claro que você vai construir uma relação médico/paciente coerente, como vemos em muitos tratados de medicina, como as pessoas teorizam. E se formos discutir o que a medicina, baseada em evidências, tem construído no Brasil, nenhum profissional consegue fazer melhor que os cubanos, porque eles estão no dia a dia, em uma quadra, no quarteirão, conhecem a comunidade, convivem com as pessoas no dia a dia. Lembro que Fátima Oliveira, uma médica negra que deu uma grande contribuição para a saúde da população negra no Brasil discutia isso e deixou muita contribuição nesse sentido. Então, não tenho dúvida que o governo que assumirá a partir do dia 1º de janeiro e tem feito essas revelações, de não querer ser atendido por médicos cubanos, médicos cotistas, tem uma conduta racista, xenofóbica contra essas pessoas. Inclusive, nós tínhamos em Salvador um médico que era suíço, e teve algumas dificuldades com a gestão, mas é incrível a forma como foi tratado, em nenhum momento esses atributos pejorativos que se faz aos médicos cubanos foi feito a esse médico. Temos médicos do Uruguai, da Argentina, do Chile, e a conduta que se tem em qualquer situação difícil com esses médicos não é a mesma. É importante registrar que isso afeta também a saúde mental de muitos desses médicos cubanos. Tivemos médicas com problemas de saúde mental, outros que enfartaram. Há um conjunto de fatores que chega em um extremo e afeta a saúde de profissionais que deixaram seu país, que tem problemas internos sim, mas que esses problemas não chegam a 20% da gravidade dos que vivemos nesse gigante do Sul, como denominado por Fidel, que tem uma desigualdade social gigantesca e adoece as pessoas.
70% da população usuária do SUS é negra. Temos desde 2009 uma Política Nacional de Saúde Integral para a População Negra, mas até que ponto ela é colocada em prática a ponto de reduzir o racismo institucional e a desigualdade da contração de enfermidades?
Temos que ter em vista que a construção do Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), através da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR), extinta desde o golpe, trouxe discussões importantes. O debate e a construção das cotas, por exemplo, quando temos uma maioria em uma comunidade sem políticas que os assista, e a gente vê aparecer cotas e médicos para cuidar, estamos garantindo assistência à população mais vulnerável. O próprio debate que o Ministério dos Direitos Humanos chegou a fazer sobre a questão da discriminação racial na saúde foi uma construção lá de trás, feita no início por alguma médicas negras, que com o movimento negro trouxe muito acúmulo para construir a PCRI e consequentemente estruturar a SEPPIR naquele governo eleito em 2002.
Então, hoje, toda essa política e construção vai por água a baixo. E quem temos de mais vulnerável e que sem dúvida ficará sem essa assistência? Essa maioria negra, a mãe de dez filhos em uma comunidade, a mãe que convive com o tráfico ao lado e a milícia do outro, a avó que criou vários netos e não conseguiu garantir que eles seguissem um caminho de formação e superação, e ou já perdeu alguns para o Estado genocida que mata pretos, pobres e periféricos. Além disso temos outro complicador que são os ciclos de vida, como estarão assistidos? A menina que engravidou, a mulher madura que é hipertensa, engravida, e corre o risco de se tornar estatística de mortalidade materna ou ter seu filho como uma estatística de mortalidade neonatal. Então, conseguimos ter muito visível que há uma construção de desassistir os que foram sempre desfavorecidos nesta população brasileira: a comunidade negra, o povo que desde o Brasil colônia teve o que sobrou, as migalhas. Na saúde é o mesmo, garantimos os centros assistidos, médicos onde o acesso é confortável e deixamos as grandes periferias, a cidadezinha lá na Amazônia, sem ninguém.
E daí temos de novo a supermercantilização da mão de obra médica. Se eu tenho 20 cidades que não tem nenhum médico, claro que vou oferecer mais para um médico vir para a minha cidade grande. Eu vi médicos tendo dificuldade de ter acesso no Norte do Brasil, vi no Rio de Janeiro, inclusive trabalhando em comunidades nas quais não podíamos trabalhar alguns dias por conta da violência e quem ficava desassistido era sempre a mesma população.
Recentemente Bolsonaro declarou que não há como comprovar que os médicos cubanos são bons profissionais sem o Revalida. Pensando na história do trabalho humanitário e emergencial dos médicos cubanos, você acredita que eles teriam sido questionados se não fossem uma população de maioria negra? Há uma questão racial para além da macropolítica?
Me sinto muito a vontade para te dizer que esse despreparo político e ideológico é de motivação fascista. Agora, eu me reservo a não valorizar muito a fala de alguém que nem em uma faculdade entrou para se formar, para ser avaliado por alguém. É uma observação minha. Do ponto de vista da formação dos médicos cubanos, eu digo que gostaria de ver os staffs brasileiros e cubanos juntos, fazendo um trabalho teórico ou prático, deixando muito evidente que os médicos cubanos não devem nada para nenhum médico brasileiro. No Brasil, na Suíça, onde quer que seja, nós teremos excelentes médicos, os bons, os regulares e os ruins. Ou temos médicos tecnicamente muito bons, mas que tratam pacientes como animais. Eu penso que o bom médico precisa estar tecnicamente preparado mas precisa ter algo além disso. Quem não sabe dialogar, buscar uma forma para resolver algo emergente, às vezes precisamos intermediar um conflito na fila do hospital.
Então, quando falamos do Revalida, eu não tenho nenhum medo dele. Mas penso que as pessoas precisam fazer uma prova de revalidação justa e coerente. Alguns órgãos de médicos no Brasil, como a Associação Médica Brasileira, buscaram e incitaram médicos cubanos a ficaram por aqui. Em 2005, tivemos um convênio de Rondônia com Cuba, no qual vieram alguns médicos que melhoraram vários indicadores do estado. Por que eles serviram? Não podemos deixar perder de vista que é incoerente ou muito oportunista aprová-los quando eles servem e ajudam. Há declarações de Bolsonaro dizendo que não era bem assim, que ele disse coisas mas mudou de opinião. O que é isso? São condutas incompreensíveis da minha parte. Mas creio que se vamos falar do Revalida, e eu não quero defender que médicos brasileiros façam alguma prova, mas poderíamos pegar o resultado por exemplo do exame do Cremesp [Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo], e dos médicos cubanos que se apresentaram no Revalida, e veremos qual o porcentual de aprovação.
Qual você acredita que vai ser o futuro da população deixada pelos médicos cubanos? Os brasileiros convocados em edital suprirão a demanda, na sua opinião?
Eu jamais poderia dizer que não dará certo, porque eu quero que dê. Não por este governo fascista, mas pela população, por irmãs e irmãos negros que estão lá e precisam ter acesso, resolver sua dor física, emocional. Mas, infelizmente, o número de brasileiros não é compatível, essa conta não fecha. Há cidades minúsculas no sul do Pará que visitei com os médicos e, sendo muito sincera, eu não iria morar. Não vou sair com meu filho de três anos e mudar para uma cidade onde eu não tenho opção de escola na metodologia pedagógica que penso para desenvolver meu filho, não tenho cinema, teatro. Isso mesmo com meu perfil humano e profissional. Agora pensando na maioria dos médicos brasileiros, que não tem esse perfil, eles não irão mesmo. Se eu, com esse perfil, não me disponho a ir a essas cidades, imagina essas pessoas, que não tocam em paciente, não examinam, que não vão querer entrar em um barco e ficar 12 horas viajando até chegar a cidade que irão trabalhar. Se os médicos pudessem ficar fixos por só um ano, como propuseram como solução, mesmo assim não daria para dizer se vão querer continuar no futuro. E se a experiência contar ponto para a residência? Mais uma probabilidade de melhorar, mas ainda não creio que será um fator definidor. Tenho muita vontade de que isso dê certo, mas não acredito que haverá uma migração em massa.
As pessoas entraram em uma bolha e não conseguem se dar conta do que está acontecendo no país. E aí todos ficaram contra um governo que colocou médicos nos lugares onde essas pessoas não queiram ir, inclusive ganhando mais pontos. Foi feito o Provab (Programa de Valorização do Profissional da Atenção Básica), que tinha essa perspectiva: você não paga imposto, ganha R$10 mil, fica fixo um ano, ganha tantos pontos da residência… Nem assim essa conta se fechou. Além disso, muitos médicos de outros países que estão aqui já estão falando em ir embora, porque se ficou difícil para os cubanos, ficará para todo mundo. Vamos tratar a partir de janeiro com um presidente eleito que não tem tato, habilidade. Eu me sentiria muito constrangida de ter um diálogo com um Ministério dirigido por uma pessoa dessa natureza. As pessoas cogitadas para o Ministério também são aquém da perspectiva dessa saúde que vai assistir a população que mais precisa.
Desde o golpe tivemos muitas dificuldades, no Rio de Janeiro, só na atenção básica foram R$6 milhões em cortes. Existe uma ilusão de que assumiremos esses espaços. Mas mesmo se todos os médicos brasileiros assumissem ficaríamos doentes, porque trabalharíamos em duas, três cidades, não iríamos dormir ou comer, trabalhar 24 horas por dia. Não existe, a conta não fecha. Existe, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), um número de médicos graduados no Brasil suficiente para assumir a população de grandes centros. A cidadezinha do interior não terá médico. Então, eu adoraria, em nome do povo brasileiro, que essa conta pudesse fechar, e que os médicos todos que estão reclamando e dizendo que não querem médicos estrangeiro, particularmente os cubanos, assumissem essas vagas e fizessem esse trabalho.
Eu dava aula em uma Faculdade de Medicina no interior da Paraíba em 2013, na vinda dos médicos para cá houve uma manifestação dos estudantes, eles simularam 400 diplomas para rasgar em praça pública. A partir daí, eu e outros colegas médicos pedimos para sair dessa faculdade. Se eles rasgavam o diploma daqueles médicos, rasgavam também os nossos. Hoje esse grupo está terminando o curso, e eu fico me perguntando, será que eles vão para os lugares onde os cubanos estavam?
Edição: Katarine Flor