Se "resistir" é uma das principais tarefas que se impõem após a eleição do presidente de extrema direta Jair Bolsonaro (PSL), a cantora Joyce Fernandes afirma: a resistência, em sua vida, não começa agora. Veio desde o berço. Nascida e criada em Santos, município do litoral de São Paulo, ela é conhecida como Preta Rara, nome artístico que adotou.
A rapper de 33 anos é também arte-educadora, feminista e militante do movimento negro. Sua trajetória, no entanto, tem muito mais a contar. Durante sete anos, trabalhou como empregada doméstica e lutou para ecoar as vozes dessas trabalhadoras com o projeto “Eu, empregada doméstica”.
Há 12 anos, Preta Rara constrói seu espaço no cenário musical, trazendo a realidade das mulheres e do povo negro brasileiro para as letras de suas músicas. Audácia (2015), seu primeiro álbum solo, reflete isso. Faixas como Falsa Abolição e Negra Sim! cantam a temática em suas letras, com provocações sobre a situação das mulheres negras no país e a falsa ideia da democracia racial.
Em entrevista à Rádio Brasil de Fato, Preta Rara falou sobre a carreira, o projeto Escola Sem Partido, as redes sociais e a mobilização do povo brasileiro.
Confira abaixo a íntegra da entrevista.
Brasil de Fato: Com suas críticas e provocações sobre as desigualdades sociais, como foi a recepção da sua produção cultural pelo mercado e pelas pessoas?
Preta Rara: Tudo que eu faço está relacionado ao meu trabalho. Chego neste lugar por conta das minhas opiniões políticas sendo expressadas nas redes sociais e as pessoas se identificando com o que eu escrevo. Tudo isso de vivências, na realidade, é uma forma de eu sobreviver neste mundo. Utilizo o rap como ferramenta pedagógica nas escolas, no palco, falando coisas que as pessoas nunca ouviram na sala de aula, mas que é de extrema importância saber. E tudo isso tem um preço.
Muitas pessoas se identificam, mas muitas se sentem incomodadas. Criei um termo que chamo de "geração incômodo", porque acredito que é através do incômodo que a gente vai conseguir obter mudanças no país. Às vezes, as pessoas falam que é uma fala dura, um rap direto e reto, mas que é necessário. E eu preferi utilizar a música do que pegar um microfone e começar a falar. Com certeza teriam bem menos pessoas interessadas. Agora, na música, as pessoas são levadas ao ritmo e à reflexão também.
Um dos principais projetos que tem sido discutido é do Escola Sem Partido. Enquanto professora de história e arte-educadora, como você enxerga essa iniciativa?
Um grande retrocesso. Nós demoramos muito para conquistar algumas políticas públicas, o direito de falar, e querem nos silenciar também na área da educação.
Acho bem estranho porque, no Brasil, a única pessoa que não pode ter posicionamento político é o professor. A mídia tem, o governo tem, a igreja. E o professor, que é o facilitador do conhecimento — não é o único que detém o conhecimento, porque acredito que o conhecimento é cíclico —, não pode se posicionar. Isso impede que os alunos raciocinem e tenham censo crítico.
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, enquanto deputado federal, votou contra a PEC das Domésticas. O que significa ter no maior cargo de poder um político que votou contra os direitos dessas trabalhadoras?
A PEC das Domésticas é mega recente e foi um grande avanço quando a conquistamos, porque deu diretrizes para falar que esse emprego é um emprego como qualquer outro — por mais que tenha todo esse resquício de uma abolição não conclusa. Mas, pelo menos, existe um documento ali exigindo nossos direitos.
Então, vem esse presidente eleito — graças a Jah não por mim — e retrocede toda a nossa luta. Se já era difícil termos os nossos direitos conquistados e esse cara vota contra, fico imaginando quanto que ainda vamos retroceder.
É um verdadeiro senhor do engenho que não quer assegurar os direitos das trabalhadoras domésticas. Provavelmente, as domésticas na casa dele têm horário para entrar, mas não têm horário para sair; o tratamento não deve ser humanizado, assim como vários lares do Brasil inteiro.
Uma das palavras de ordem para o período que se coloca a frente com a eleição de Bolsonaro é ‘resistência’. O que significa essa resistência pra você?
Para mim, resistir é estar viva. Porque a gente sabe que eu, mulher preta e gorda, já estou no mapa da vulnerabilidade social, independente de que partido ocupe [o poder]. Vou resistir através da arte, da música, do afeto dos meus iguais e não me calar com toda essa opressão que está por vir. Estou preparada para o pior.
Acho que essa placa de ódio que foi instaurada no Brasil sempre existiu, mas se potencializou porque com um líder como o novo presidente, as pessoas se sentiram pautadas a escancarar o seu ódio, já que ele falava isso em rede pública e nunca era detido ou recriminado.
A gente tem que resistir, e a minha fala vai mais contra os fascistas do que ficar apenas apontando para as pessoas e dizer 'eu te avisei'. A gente vai ter que dar um jeito de quebrar essa placa de ódio de outra forma, trazendo o afeto e dialogando com as pessoas.
As redes sociais tiveram papel fundamental nestas eleições. Às vezes por um lado muito negativo, como a divulgação das fake news, mas por vezes por um lado positivo, como o espaço que elas dão pra ecoar vozes e pontos de vistas. Você acredita que esse pode ser um espaço de resistência?
Sim. Me fortaleço muito com as redes sociais, apesar dos vários ataques que recebo. Assim que saiu o resultado do segundo turno, entrou uma galera para me xingar. Tudo que eles estavam esperando era Jair Bolsonaro ganhar para poder dilacerar todo o ódio que têm na internet.
Mas, a internet também possibilitou que a gente pudesse eleger nossa primeira candidata estadual mulher trans e negra, Erica Malunguinho. Então foi possível fazer campanha na internet, como a Talíria Petrone, que ganhou no Rio de Janeiro. Conseguimos subverter acima de toda essa questão da fake news para poder divulgar nossos candidatos e candidatas.
Utilizo a internet também como uma ferramenta de afeto, aproximação, resistência e para falar sobre tudo que precisamos falar. E não existem outros canais abertos para isso. A internet é um pouco mais democrática do que a TV e mais acessível, então conseguimos dialogar com os nossos e com quem também não tem acesso a esse tipo de informação.
Edição: Rute Pina