Este artigo é parte do livro Direitos Humanos no Brasil 2018 que será lançado no próximo dia 5 de dezembro em São Paulo.
A democracia não pode ficar à mercê do tempo ou da vontade particular dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Precisamos de um judiciário capaz de dar as respostas necessárias para o projeto de democracia do país.
O Brasil, pós período ditadura civil militar 1964-1985, se reconstruiu sobre a base de um Estado Democrático de Direito que se funda no princípio da soberania popular, que como ensina José Afonso da Silva, impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure na formação das instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado democrático, mas não o seu completo desenvolvimento.
A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre justa e solidária; em que o poder que emana do povo deve ser exercido em proveito do povo; pluralista, porque respeita a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe o diálogo entre opiniões, pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes na sociedade; com reconhecimento de direitos individuais, políticos e sociais, que busque a vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício; que supere as desigualdades sociais e regionais. O objetivo é, em última análise, a realização do princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana.
A constitucionalidade é da essencialidade do Estado Democrático de Direito, assim como um sistema de direitos fundamentais individuais, coletivos, sociais e culturais; forte nos princípios da legalidade; igualdade e justiça social; e sempre agasalhando a divisão de poderes, o que pressupõe, para o Poder Judiciário, a independência do judicial como uma garantia para o cidadão.
Neste desenho, o juiz deve ser o instrumento da Constituição na defesa incondicional e na garantia efetiva dos direitos fundamentais da pessoa humana. É o responsável para que a Constituição Federal não se torne letra morta. Nas mãos do Poder Judiciário está a manutenção da higidez constitucional, a afirmação do próprio Estado.
Um judiciário democrático é aquele capaz de dar as respostas necessárias para o projeto de democracia que o país agasalhou na Constituição Federal de 1988. Mas, a expectativa constitucional do povo brasileiro não está encontrando guarida no judiciário pois o povo brasileiro não se reconhece neste poder, na medida que não lhe atribui o requisito fundamental, que é a confiança, o que se pode constatar através de recentes pesquisas, como a do Índice de Confiança na Justiça no Brasil –ICJBrasil, produzido pela FGV, que mostra que de 2013 para cá, a confiança no Judiciário caiu 10 pontos percentuais, passando para 24% em 2017, percentual significativo, pois em anos anteriores não havia oscilações desta magnitude. O Ministério Público não está em melhores condições: em 2014, o índice era de 50% e caiu para 28% em 2017.
Pesquisa da Datafolha indica a percepção majoritária do povo brasileiro em todas as variáveis demográficas: 92% da população avalia que a justiça brasileira trata melhor os mais ricos do que os pobres.
Portanto, forçoso concluir que a imagem que o povo brasileiro tem do judiciário é que magistrados não estão se subordinando à vontade do povo soberano. Vontade constitucional popular não se confunde, de maneira alguma, com vozes e gritos das ruas, com clamor popular, ou o que a vontade televisiva e midiática diz ser tal vontade.
Não.
A vontade popular só pode ser encontrada nas palavras da Constituição Federal de 1988, fonte das expectativas de construção da nossa sociedade. Nela encontramos seus princípios, fundamentos e patamares éticos. Já em seu preâmbulo, o povo estabeleceu o Estado social brasileiro. Nenhum ente estatal (juiz, legislador, ou membro do executivo) pode substituir estas diretrizes pelas suas ou do que ele interpreta ser a vontade popular.
Ser juiz democrático é ter coragem para se contrapor aos barulhos das ruas, é saber que a sua submissão se encontra na Carta Cidadã.
E a cada dia a falta de legitimação do Poder Judiciário se aguça, o que ocorre do seu afastamento da missão constitucional de garantia dos direitos dos cidadãos. Na verdade, o que está sendo transmitido é que o judiciário visa atender os donos do poder econômico.
A desconfiança em relação ao judiciário é maior nos últimos anos, justamente, no período pós rompimento da ordem constitucional, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Este é o marco de maior significação, recheado de várias decisões, em diversos processos, que tiveram repercussão midiática, no qual o judiciário se substitui à vontade legislativa ou realiza a sua função, ao arrepio da norma.
Mas é preciso apontar que o comportamento seletivo do Judiciário já vem de outros tempos. No Império tivemos a Lei Eusébio de Queirós, que proibia a entrada de africanos escravizados no Brasil, mas sabemos que mais de 500 mil entraram no país, mesmo após a promulgação da lei. Na época eram os interesses dos proprietários de terras e de escravos que dominavam o cenário. São pouquíssimos casos que esta conduta foi levada ao Judiciário e quando o foi, magistrados foram repreendidos.
Continuamos a detectar a seletividade. Na justiça criminal a atenção é para os jovens negros e periféricos, como reflexo da justiça neoliberal, que segundo Antoine Garapon, tem critérios próprios, dentre eles a chamada “segurança”, que está sempre pronta a homogeneizar os processos judiciais, a prestação jurisdicional e, na área criminal, é dirigida à um grupo determinado que precisa de controle pela via punitiva. O inimigo está eleito. Na época da ditadura eram aqueles que sonhavam com um outro país, agora são uma categoria na qual estão os jovens, negros e periféricos. Uma questão de classe. Esta cultura está arraigada no cotidiano do sistema de justiça.
E a desconexão do judiciário, com o propósito constitucional, em período contemporâneo ao golpe, vem de suas decisões e suas posturas. Apenas a título de exemplo, menciono alguns episódios e situações que foram divulgados e que escancaram violações à princípios fundamentais pelo judiciário, embora deva ser o ente último a salvaguardá-los. Vejamos:
– O grande número de conduções coercitivas realizadas ao arrepio da lei. Existem regras claras para que ela possa ser realizada. Se não se encontra nas hipóteses taxativas, o que temos é uma prisão, um cerceamento da liberdade do ir e vir, realizada ao arrepio da lei. A condução coercitiva do acusado só seria cabível depois de intimação prévia, não cumprida.
– A violação de norma constitucional referente à divulgação de diversas escutas telefônicas, de várias pessoas, feitas aos borbotões, culminando com a violação do juiz Sérgio Moro ao divulgar uma ligação da presidência da república, ao ex-presidente Lula, em absoluta afronta à ordem jurídica.
– O impedimento de Lula, candidato à presidência da república, de dar entrevistas ao arrepio ao sistema eleitoral e ao direito de manifestação de todas as pessoas detidas.
– A “criminalização” dos movimentos populares, aqui entendido em seu sentido amplo, encontra no judiciário a sua maior ferramenta, seja na impunidade dos homicídios praticados pelos algozes dos defensores de direitos humanos, seja no cerceamento das manifestações, que são o exercício da liberdade de expressão, pedra fundamental da democracia. No mês de agosto de 2018, magistrados proibiram manifestações favoráveis ao presidente Lula em dois shoppings centers, no Rio de Janeiro e Salvador.
– O sério problema da concentração das decisões, nas mãos de um ministro, na medida que cada um resolve quando coloca o processo para julgamento e depois é a presidenta do Superior Tribunal Federal (STF) quem decide se o processo vai ou não entrar para pauta.
No primeiro caso, no campo direto da democracia, podemos lembrar do caso de financiamento eleitoral por empresários, no qual o ministro Gilmar Mendes, após pedido de vista, segurou o processo por mais de um ano, em que pese já tivesse posição sobre a questão.
Na segunda hipótese o caso das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) que tratam do tema da execução provisória, da prisão, após a decisão em segunda instância. A democracia não pode ficar à mercê do tempo ou da vontade particular dos ministros do STF. Precisamos de um judiciário capaz de dar as respostas necessárias para o projeto de democracia do país.
Sobre esta questão, o STF relativizou o alcance do princípio da presunção de inocência, direito fundamental, em contrariedade ao texto da Constituição, e, deste modo, feriu violentamente a segurança jurídica e a integridade do Direito. A questão que o povo pergunta é: por que houve uma mudança de posição do STF pouco antes do julgamento do presidente Lula? E por que um tema em que a maioria dos ministros pensam de uma forma, julgam de outra?
O que mais choca a população é que tudo isto é oriundo do guardião do sistema democrático, do poder que têm o dever de salvaguardar o núcleo do Estado Brasileiro, os direitos fundamentais, que não admite flexibilização alguma.
Este quadro permite concluir que o judiciário foi um dos principais atores do rompimento constitucional e está com sua legitimidade questionada pelo povo soberano, justamente porque não o vê como aquele que resguarda seus direitos. Está na hora de conectar-se com as razões do povo brasileiro sem esquecer que o poder não lhe pertence: o dono é o povo soberano.
Respeitemos.
*Por Kenarik Boujikian, cofundadora e ex-presidenta da Associação Juízes para a Democracia, desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Edição: Brasil de Fato