A esperança está em como o povo reagirá ao amanhã
Por Gladstone Leonel Jr*
Uma retrospectiva de 2018 no divã, jamais poderia se limitar à 2018, até porque é um ano que remete aos anos e experiências passadas.
Quando era adolescente, entender a história era algo que fazia todo o sentido para que eu compreendesse o mundo. Ao me deparar com situações históricas catastróficas, buscava captar suas razões. Foi essa curiosidade que me motivou a entender a ditadura civil-militar iniciada em 1964. Aquilo me causava tantas indagações que, na juventude, busquei em vários momentos compreender melhor esse período. O que levava agentes do Estado brasileiro a torturar, matar estuprar e prender pessoas que pensavam e agiam, com toda razão, de forma diferente do que aquele governo ilegítimo e autoritário propunha?
Os estudos e as vivências me permitiram entender que isso também acontecera em outros países, com formas semelhantes, e repressão similar, tal qual na ditadura brasileira. Já trabalhando como advogado descobri, sem querer, que as primeiras pessoas assassinadas pela ditadura em Minas Gerais eram meus familiares. Os seus respectivos nomes estavam no livro organizado pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos políticos da época da ditadura, com apoio da Comissão de Anistia, a qual tive a oportunidade de trabalhar anos mais tarde. Os assassinatos de pai e filho aconteceram mesmo sem eles terem atuado politicamente: pagaram com a vida pela atuação de um dos filhos na esfera sindical. A ditadura não diferenciou quem era quem, simplesmente matou quem pensava diferente, ou quem eles imaginavam que pensava diferente.
Aquele episódio gerava algumas reflexões na minha cabeça. Sempre pensava, quem seria capaz de apoiar uma ditadura militar? Será que meus avôs, os amigos de família, primos mais velhos ou tias, teriam tido a coragem de dar suporte a um regime tão violento e vergonhoso à história nacional? Ao longo das conversas, dos afetos e das vivências isso desaparecia das reflexões, pois parecia algo absurdo, inclusive para eles um apoio desses, tanto que, até pouco tempo ninguém teria coragem de defender abertamente aquele período.
Depois do Golpe de 2016, a falta de apreço à democracia por parte de algumas pessoas causava uma estranheza, mas ainda relevava por achar que aquilo partia de um ranço antipetista e poderia gerar uma reação nesse sentido.
Eis que chega 2018. Quando esse ranço se transformou em apoio a uma candidatura do deputado Bolsonaro, aquele cujo projeto político é pautado pela violência, em que as grandes referências remetem aos tempos do regime militar e a um de seus algozes torturadores, Carlos Brilhante Ustra, percebi que alguma coisa muito errada acontecia. Aquela dúvida que sempre tive em relação às pessoas que apoiariam uma Ditadura Civil-Militar começava a ser desvelada e de uma forma extremamente melancólica.
Talvez o grande aprendizado desse curto período em que foram desenvolvidas políticas relacionadas à Justiça de Transição seja a importância em se afirmar a Memória, a Verdade e a Justiça. Essa tríade é implacável e, vagará por aí enquanto essas contas não forem prestadas. É pauta que não cabe mais nos porões.
De uma eleição que deixou de lado a legitimidade genuína do debate das ideias na democracia para transformar uma enxurrada de notícias falsas do mundo virtual em votos populares, traz todo um potencial de mudanças e frustrações com as redes sociais, e por isso permitirá também uma coisa: Dessa vez, ninguém será esquecido! Tenha apoiado ou não tudo o que representa essa mudança.
Ninguém será esquecido quando sobrevierem agressões provocadas pelo estímulo à violência, inclusive, armada.
Ninguém será esquecido por quaisquer assassinatos ou prisões pelo fato de alguém pensar diferente.
Ninguém será esquecido com o aumento da pobreza pela falta de investimentos públicos de um governo privatizante em uma realidade de desigualdade social absoluta.
Ninguém será esquecido quando se der o encarecimento de produtos do cotidiano como gás, alimentos, combustíveis ou não for oferecido mais tratamento médico público mínimo.
Aquela dúvida da adolescência, não voltará a ocorrer. Pois, enquanto estivermos vivos, permanecerão as lembranças daqueles inocentes, úteis ou não, que apoiaram uma eventual barbárie e todas as suas conseqüências, mesmo que estejam inebriados por uma epifania delirante repetidora de mantras, que evocam um pretenso “comunismo”, “gramscismo” (sic), “ideologia de gênero”, que não encontram relação com o mundo real. O grau de delírio faz com que a ciência e suas proposições basilares sejam ameaçadas por um exército de zumbis, cujo máximo de profundidade passa por um meme de whastapp, sem confirmação de veracidade, ou alguma passagem bíblica sem qualquer nexo com a realidade do século XXI. Todos aqueles que botaram suas frustrações pessoais, ao invés de procurarem um psicólogo, ou seus privilégios, ao invés de trabalharem como qualquer um do povo, e elegeram um projeto político autoritário e protofascista carregarão esse legado pelas próximas gerações. Mas, um homem do povo, Cartola, alertou sabiamente que, o mundo é um moinho (…) vai reduzir as ilusões a pó.
O pessimismo remetido nesse samba, não deve se furtar de enxergar a existência de um amanhã. A esperança está em como o povo reagirá ao amanhã. Esse amanhã chegará e permitirá mais uma vez a brava gente brasileira levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima, sobretudo, daqueles que ainda não se deram conta que também prestarão contas à história.
Portanto, entender o recuo tático e ter cautela são questões importantes para os nossos próximos dias, meses, anos. Embora seja fundamental não deixar o medo imobilizar. Não duvidemos do prenúncio de Chico Science:
“O medo dá origem ao mal
O homem coletivo sente a necessidade de lutar
São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade
Viva Zapata!
Viva Sandino!
Viva Zumbi
Antônio conselheiro!
Todos os panteras negras”.
Que a sorte, e a consciência da cada um, estejam lançadas! Que venha 2019, o ano de mais um recomeço e de novas angustias para o divã!
* Gladstone Leonel Jr. é professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional e da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no Brasil (PNUD/ONU) atuando na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2015). Membro da Secretaria Nacional do IPDMS (2018-2020) e da RENAP.
Edição: Brasil de Fato