Cozinheira, realizadora cultural e conselheira nacional de Cultura Alimentar, a paraense Tainá Marajoara, descendente do povo Aruãn marajoara, soma em sua trajetória episódios em defesa da alimentação saudável no país. E vai além: seu desejo e atuação são para que a alimentação seja compreendida como cultura brasileira.
Desde criança, quis fazer teatro, mas o curso não era oferecido no estado do Pará. A alimentação, então, foi ganhando cada vez mais protagonismo em seu cotidiano. “Alimentação não entra na nossa cultura quando a gente começa a cozinhar, ela já nasce com a gente”, defende.
Hoje, aos 34, Marajoara é fundadora do Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá, em Belém (PA) e é crítica ao que descreve como um processo de “intelectualização e branqueamento do raciocínio brasileiro” e defende a valorização dos saberes e ensinamentos tradicionais.
Com “saudações marajoaras”, Tainá deu início à prosa com o Brasil de Fato. Confira:
A luta pela cultura alimentar
Ao lado de movimentos populares e das populações tradicionais, Tainá Marajoara assumiu a tarefa de legitimar a alimentação brasileira como cultura nacional. Até o ano de 2013, ela só seria considerada cultura se estivesse dentro de uma manifestação cultural.
Para cumprir a tarefa, foi necessário ocupar o espaço nas universidades, nas plenárias públicas nacionais e internacionais e um grande esforço para sistematizar todo o conhecimento do povo.
Depois de ampla mobilização junto aos povos e comunidades tradicionais, agricultores familiares e às lideranças de patrimônio imaterial durante as conferências regionais de cultura que aconteceram nos anos de 2012 e 2013, conseguiram firmar a legitimação do conceito de cultura alimentar pelo Governo Federal através da Moção 094/2013 aprovada na Conferência Nacional de Cultura.
A tarefa não foi fácil. Um dos principais desafios na empreitada foi a diferenciação de cultura alimentar e gastronomia. “O que estava em vias de ser considerado como expressão cultural era a gastronomia, o que nos coloca equiparado ao processo materialista de produção de alimentos, que é um processo de acumulação de renda, terra e morte”, pontua.
Nesse sentido, gastronomia (a ciência do sistema alimentar), seria todo o tipo de receita produzida, o que está longe de se igualar à cultura alimentar. “Um produto vindo do latifúndio, da terra grilada, cheio de agrotóxicos, transgênico, tudo isso é um produto gastronômico.”
“Mas máquina não faz ritual, não tem espiritualidade, não transmite conhecimento entre geração. O processo de produção materialista é em larga escala e em série, o que significa que não tem uma produção com identidade, uma assinatura ali. Diferente da produção cultural. Cultura vem do conhecimento tradicional, das práticas artesanais, do saber, fazer, falar, dos vocabulários, dos nossos rituais, dos nossos cantos”, defende Tainá.
Ela cita como exemplo as mulheres agricultoras que cantam o carimbó — ritmo paraense que é patrimônio cultural brasileiro — para os seus roçados. “Por si só, é uma expressão cultural. O carimbó tem nas suas músicas uma crônica do cotidiano da produção de alimentos”, explica.
Greenwashing, ou lavagem verde
O conceito de cultura alimentar pretende garantir que os povos tenham suas práticas culturais respeitadas e que haja a proteção do patrimônio genético. “Para que seja possível salvaguardar o nosso saber, fazer, falar, reconhecer nas nossas sementes os nossos atos culturais e, além disso, para não nos tornar greenwashing, que é a lavagem verde do dinheiro das corporações”, defende Tainá.
O termo greenwashing, empregado pela cozinheira, ganhou maior repercussão sendo ecoado pelo movimentos ambientalistas nos anos 2006 e 2007, e se refere à estratégia de empresas, indústrias e organizações não governamentais que insistem em propagar discursos ligados à defesa do meio ambiente quando, por trás das imagem, nenhuma medida efetiva é tomada para minimizar os problemas ambientais.
Marajoara relembra que, às vésperas da Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil, por exemplo, o McDonald’s tentou impedir que as baianas comercializassem acarajé — prato tombado como patrimônio cultural brasileiro em 2004 — durante os jogos do evento em Salvador (BA). Antes disso, a corporação também pleiteou produzir o prato, e uma longa batalha foi travada para garantir que apenas as baianas pudessem fazer isso.
Tainá destaca a importância de iniciativas a nível nacional, como é o caso do Iacitatá, que tem atuado em plenárias internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU) desde 2014. “Se não, nosso patrimônio genético e cultural vira propaganda sustentável das corporações.”
Quem põe comida na mesa do brasileiro
Com a chegada de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência e o aumento de representantes da extrema direita no Congresso Nacional, Tainá Marajoara entende que “o que se apresenta no horizonte é uma ameaça muito grande e um esforço gigantesco para dissociar os movimentos de agricultura familiar da produção de alimentos.”
Um desses movimentos e o de maior protagonismo no Brasil e na América Latina, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), já foi alvo de ameaças do presidente eleito e sua base aliada por diversas vezes. No próprio plano de governo, Bolsonaro afirma que tipificará a ocupação de terras improdutivas como um ato “terrorista”.
Composto por mais de 350 famílias organizadas por 24 estados do país, o MST promove, através da agricultura familiar, a produção de alimentos orgânicos, sem uso de agrotóxicos. De acordo com dados do Censo Agropecuário de 2017, as pequenas propriedades rurais (com até 50 hectares) representam 81,3% do total de estabelecimentos agropecuários no país. Está previsto para 2019 a divulgação do volume de participação da agricultura familiar na produção de alimentos.
“A população brasileira não consegue perceber que cada agricultor tombado no campo é um dia a menos de comida dentro de casa. Quando chega essa criminalização que se apresenta cada vez mais próxima de todos nós, acontece um aumento aceleradíssimo do conflito de terras. O conflito de terras é a morte dos agricultores. Se nós não temos agricultores extrativistas, não tem comida na mesa do Brasil”, defende.
Uma escolha política
Pensando em como a produção de alimentos esteve relacionada, desde o início das relações humanas, ao cotidiano das pessoas na agricultura familiar; e hoje na disputa por um modelo de conciliação justo entre a produção agroindustrial em larga escala e o pequeno produtor rural, Tainá não titubeia ao afirmar: “comer é um ato político, revolucionário e cultural”.
A cozinheira defende que a sensibilização do consumidor ao escolher o alimento que coloca na mesa de casa é essencial e não está abaixo ou acima da importância de travar uma luta política nos espaços de poder institucional pela distribuição de terras e o fim do envenenamento do solo pelos agrotóxicos — empregados em 33% dos estabelecimentos brasileiros de acordo com o Censo Agropecuário de 2017.
“Quem vai estar na minha mesa? O café Guaíi ou a corporação que está matando no quilombo? São os frutos das árvores antigas, coletadas pelos extrativistas da Amazônia, ou a soja envenenada que foi lá e derrubou árvores de mais de 500 anos?”, questiona.
Nas palavras de Tainá Marajoara, a escolha é, sim, um ato político.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira