Por Vivian Fernandes
De Bogotá (Colômbia)
Primeiro líder camponês a chegar ao Senado colombiano, Alberto Castilla Salazar tem postura simples e uma grande simpatia. Caminhando nos salões do Congresso Nacional ou entre militantes populares, veste as mesmas roupas, calça jeans, camisa polo e jaqueta comuns, junto à bolsa marrom e bege da etnia arhuaca. A diferença entre os dois locais é que no Senado passa quase indiferente, enquanto nos espaços populares é cumprimentado, abraçado e parado para conversas.
Nascido no município de Convención, no departamento do Norte de Santander, fronteira com a Venezuela, ele foi criado pela mãe e pelos avós. De um povoado formado principalmente por peões agrícolas e camponeses, ele ingressou no movimento comunitário aos 14 anos, liderando a Junta de Ação Comunal – um comitê de autogestão autônoma local reconhecido pela lei colombiana.
Terminado o ensino médio, Alberto começa a trabalhar como pedreiro na construção civil e, depois, na prefeitura do povoado, onde passa a estreitar sua relação com os camponeses. “Seguimos construindo até que fui assumindo a luta camponesa como a minha luta”, conta.
Dentro de sua militância campesina, passa a integrar o Comitê de Integração Social do Catatumbo (Cisca), que faz parte da Coordenação Nacional Agrária (CNA), na qual chegou aos 16 anos e foi ocupando diversos postos até se tornar seu dirigente político nacional.
Avançando alguns anos mais na história, Castilla relata que, em 2013, ocorreu uma importante paralisação de camponeses; logo depois, ele passou a ser o representante da CNA na construção do Congresso dos Povos, organização que articula processos e movimentos de toda a Colômbia.
A partir destes dois espaços, começa a tomar corpo a discussão de uma candidatura própria ao Senado. “Nós vínhamos de uma distância, em que não há confiança entre o movimento social e a representação política. E, pois, encontraram em mim algumas qualidades, características, que eu poderia assumir [esse papel]. Apresentamos o nome e ganhamos”, explica, com a simplicidade que lhe é peculiar.
Assim, em 2014, pela primeira vez na sua história, o Congresso colombiano tem um dirigente campesino como Senador da República: Alberto Castilla. Agora em seu segundo mandato, reeleito em 2018 pelo Polo Democrático, ele faz parte dos atuais 23 membros da Bancada Alternativa pela Paz, de um universo de 108 senadores*.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: Alberto, em seu primeiro mandato (2014-2018), quais foram as principais conquistas e dificuldades?
Alberto Castilla: Nós entendemos que com nossa chegada ao Congresso da República não iriam permitir que nós tivéssemos grandes conquistas legislativas. Mas, sim, que começaríamos a ter uma relação com o movimento social, não somente com os camponeses, mas também com os trabalhadores organizados em sindicatos e com outras expressões do movimento social.
E fomos propondo uma relação com o movimento camponês, na qual fomos construindo uma reforma constitucional que é a mais importante que nós já enfrentamos, que é uma reforma que vê o campesinato como sujeito político de direitos.
Desde 2014, essa [reforma] foi construída em debates locais, regionais, com universidades, institutos de pesquisa. Todos nos ajudaram, e enfrentamos essa reforma. Lógico que a reforma não passou.
Mas hoje qual é o ganho? O ganho é que hoje todo o movimento camponês na Colômbia fala da necessidade de ser camponês. Ou seja, faz parte da agenda de luta do campesinato. Isso foi o primeiro período, porque agorinha temos o mesmo projeto em discussão. Não abandonamos a luta.
E como foi o processo de aproximar os movimentos populares ao Legislativo?
Eu acredito que, e te digo com muita humildade, a minha passagem pelo Congresso ajudou a resolver um debate no movimento camponês e no movimento social: o da representação política. Nesse debate nós servimos como referência.
As pessoas acreditavam que ao eleger um líder ao Congresso, perdiam esse líder, o cooptavam. Eu demonstrei que não se perde, que mantenho as mesmas atitudes, as mesmas decisões. Isso é o que eu quis fazer, ou seja, um exercício parlamentar que diga ao movimento social e ao conjunto da sociedade que é possível fazer política e não se perder pelo caminho.
Como a discussão sobre a conformação de uma Assembleia Legislativa Popular, como vimos formar-se em outubro, a partir dos movimentos sociais, dialoga com essa ideia de disputar mandatos legislativos no Congresso?
O Congresso dos Povos [organização social e política que reúne movimentos e processos populares de todo o país] quando nasceu, como parte dos movimentos, não como essa assembleia, na qual o Congresso dos Povos é mais um entre outros; mas quando o Congresso dos Povos nasceu, começaram a se construir mandatos que equivalem a uma legislação, mas populares.
Mandatos para defender o território, mandatos para buscar a participação das pessoas na tomada de decisões. Diziam “mandatar” para a vida digna. Ou seja, era uma legislação para dentro mais que tudo, como uma decisão nossa para fazer, para organizar o território, construir poder popular, para nós mesmos.
Eu creio que quando se convoca uma assembleia legislativa popular, se está elevando, pelo menos, em uma retórica distinta, porque é marcada dentro do que existe, de uma legislação que todo o tempo se assimila à institucionalidade governamental, do Estado.
Sinto que quando se fala da Assembleia Legislativa Popular, realmente hoje se deve estar pensando em como os mandatos [populares] que se construíram voltam como norma dentro da institucionalidade do Estado. E é necessário tramitá-la.
Daria para interpretar que hoje, sim, vemos a necessidade de chegar com nossas propostas à institucionalidade do Estado. Porque antes o que fizemos foi fortalecer nossa institucionalidade popular. Agora é preciso chegar à institucionalidade do Estado.
Eu acho que é um salto na disputal institucional. A partir do movimento social se está assumindo o ato de tecer relações com uma representação política. Ou seja, estamos dando um passo em direção à democracia representativa, que tem uma forma distinta de quando fazemos mandatos para nós mesmos.
É uma democracia direta falando para uma democracia representativa. Acho que, sim, estamos assumindo uma disputa institucional. Acreditamos que temos que disputar o Estado e suas instituições para colocá-los a serviço do movimento social e popular.
E você foi reeleito ao Senado nas eleições de 2018. Há mudanças neste cenário político com o de 2014?
Sim, mudou, porque houve uma decisão maior de setores sociais de aspirar chegar ao Congresso. E por meio dessa decisão, elegeram mais [parlamentares], de diferentes partidos, diferentes movimentos políticos. Conseguiu-se fortalecer a presença no Senado e na Câmara de Deputados.
Nós passamos a ter hoje 23 senadores de uma corrente que pode se encontrar para algumas coisas, não que esteja unificada em tudo, mas que pode se encontrar.
É importante que isso se tenha fortalecido e que tenha configurado não somente em um número maior de membros no Senado e na Câmara, mas que entendemos a necessidade de fazer coisas juntos, de atuar juntos.
É uma bancada pela paz que inclui os congressistas do partido FARC [Força Alternativa Revolucionária do Comum], do partido Aliança Verde, do Polo Democrático Alternativo, da “lista dos decentes”, que foi uma lista que apoiou o Colômbia Humana – corrente progressista que impulsionou [a candidatura presidencial de Gustavo] Petro –, a presença de indígenas e mesmo de Petro [que assume o cargo de senador após uma mudança legal que concede o cargo ao candidato derrotado no segundo turno].
Essa é a configuração de uma bancada alternativa que pode funcionar com 23 [senadores] para um tema e pode ser que não sejam os 23 para outro tema. Mas, pelo menos, para ter relações com o movimento social já existe uma bancada que se está referenciando.
E eu acredito que isso é muito importante, porque segue nutrindo, alimentando, a necessidade de que tenhamos maior representação. Na medida em que vejamos que seguir tendo o que hoje temos não é suficiente, nós vamos nos desafiando, colocando desafios maiores. Temos que ser maiorias no Congresso. E podemos ser, e temos que buscar ser.
Acredito que se está contribuindo para mudar a mentalidade que se tinha frente à representação política.
Quais são as bancadas inimigas da bancada alternativa da paz hoje no Congresso colombiano?
Para a bancada alternativa, a disputa maior é com a extrema direita presente no Congresso e que está no governo, que é o Centro Democrático. Essa é uma corrente muito forte, porque tem o presidente da República [Iván Duque].
Mas com eles também se articulam a representação da igreja cristã não católica, dos evangélicos. Duas correntes fortes. Para nós, a igreja evangélica é parte do bloco contra o qual disputamos. Principalmente esses.
Ainda que o Centro Democrático queira ser localizado no centro da política, nós sempre os localizamos na extrema direita pelas suas práticas. Basicamente esses são os setores mais fortes.
Há o bloco liberal, com o qual a confrontação é menor, em alguns momentos podemos estar com eles, mas nosso enfrentamento é com a extrema direita.
Quais são as principais disputas para este seu mandato?
Uma é conseguir avançar na implementação da paz. Entrando em uma discussão sobre o que significa paz, há uma disputa se a paz são direitos ou se a paz é cumprir para com as insurgências o que foi firmado.
Dentro dessa disputa de paz, pautamos a propriedade da terra, o acesso e o controle das terra, o reconhecimento do campesinato, garantias trabalhistas, respeito aos direitos, à igualdade, à participação.
E como fica o tema dos acordos e diálogos de paz?
Assim como eles mesmos afirmam, as FARC [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] assinaram [o acordo] sabendo que não era o melhor. Essa é a mesma leitura que nós temos. Mas conseguiram entrar em acordo em uma agenda, e essa é a agenda que foi assinada no acordo. E o que está acontecendo hoje é que o governo não cumpre o acordo.
Primeiro, porque para o governo atual a leitura é que esse acordo não foi assinado pelo Estado, mas sim pelo governo. Então, para eles, não compromete este governo, que eles podem mudar, assumir outra negociação, esse é um problema que tem a implementação. Que não tenha nenhuma vontade de cumprir com o que foi acordado. Portanto, o não cumprimento é cada vez maior, porque não há orçamento, mas tampouco há institucionalidade para responder ao que foi acordado.
E eu acredito, fazendo um balanço a partir da minha leitura, a FARC o que tem de concreto é a participação no Congresso, e que estão tratando de estruturar todo o restante.
O tema da reforma rural integral que deveria ser discutida e que não tem orçamento, que não tem disposição para dotar de terra o campesinato. A jurisdição especial de paz, que é o central do acordo, porque, finalmente, a um ex-guerrilheiro você pode cumprir com um projeto produtivo, que não devem nada para ninguém para seguir a vida, mas não pode manter a insegurança de sua situação jurídica.
Eu acho que há um problema muito sério que vai colocar em risco o acordo a partir desse não cumprimento.
Por isso vem ocorrendo que alguns membros do que era a guerrilha das FARC, fazendo uma avaliação desse não cumprimento do governo, não acreditam mais no governo, e estejam tomando decisões de voltar a se armar. E que vejam que seu partido não tem força suficiente para brigar pelo que acreditaram [que seria feito]. Isso por um lado.
Por outro lado, com a mesa de diálogo com o ELN [Exército de Libertação Nacional], no governo [Juan Manuel] Santos se avançou [nos diálogos]. E este governo [Iván Duque] não reconhece esses avanços e começa a zerar uma agenda que começa por exigir unilateralmente do ELN algumas atuações, algumas condições.
Para o país, essa é uma mensagem de retroceder, de demorar muitíssimo mais [no avanço da paz]. Mas eu acredito que para quem está na mesa [de diálogos] buscando uma negociação, tampouco lhe dá uma segurança de avançar e deixa dúvidas sobre o que se está falando.
Eu acho que essa dificuldade de como andam os processos e o risco que tanto a mesa de diálogo com o ELN como o acordo com as FARC sejam um fracasso.
Seria retroceder com o avanço pela paz na Colômbia?
Sim, totalmente. Por isso essa bancada [pela paz] tem que colocar como o centro de sua atuação a necessidade de não retroceder, mas de construir sobre o que já foi construído, reconhecer e aí caminhar adiante.
E essa bancada entende a necessidade de buscar dar continuidade à solução política com as insurgências, mas também buscar as condições e garantias para o movimento social. Defender a vida dos líderes. Esse é o principal caminho: a partir do movimento social, construir a participação.
O fato é que o governo tenha hoje a representação de um partido político, de uma corrente política, que desconhece tudo o que é a construção da paz, e que vai pelo caminho de seguir garantindo ao capital transnacional as melhores condições para suas atividades e que adapta a sua institucionalidade para servir ao capital transnacional; e desconhecendo a existência dos povos.
Mas essa realidade encontra hoje uma resposta que é de um movimento social que não perdeu a capacidade de se mobilizar e que entende que a mobilização articulada com a representação política, do meu ponto de vista, lhe dá potência, lhe dá força.
Não é um movimento social lutando sozinho, mas agora também põe a seu serviço espaços institucionais.
- O Senado colombiano hoje é composto por 108 parlamentares. São eleitos 100 senadores nacionalmente, dos quais Castilla faz parte, por meio de votações nacionais, e não com representações dos estados, como é o caso brasileiro. Além desses, há dois indígenas votados pela circunscrição especial onde só votam indígenas; cinco senadores da Força Alternativa Revolucionário do Comum (FARC), que possuem dois mandatos garantidos como resultado dos Acordos de Paz; mais Gustavo Petro, que foi o candidato a presidente derrotado no segundo turno da última eleição, também uma regra nova no sistema político do país.
FICHA TÉCNICA
Entrevista: Vivian Fernandes || Edição: Luiza Mançano || Fotos: Vivian Fernandes e Assessoria de Comunicação do Senador Alberto Castilla || Arte gráfica: Fernando Bertolo