Ela absorve o mundo com finos traços, que se interpelam a ponto de se tornar quase indiscerníveis, como uma pele, uma textura delicada de nanquim onde a luz atravessa. As formas encarnam figuras de sua interioridade, animais fantásticos, fantasmas da ditadura, mil e uma faces da dor, mas também do amor e do sonho.
Desenhos da Resistência é uma charmosa homenagem a toda sua carreira artística, com ênfase nas imagens com conteúdo de crítica social que perpassam por sua trajetória de mulher de fibra, entusiasta das causas populares.
O livro começa contando a história da vida de Marlene Crespo, de seu engajamento político, suas passagens entre o DOPS e os tristes porões do DOI-CODI, onde foi presa e torturada pelos carrascos do regime militar, o desenvolvimento de sua arte, seus livros e ilustrações e publicações com os seus trabalhos. A segunda parte do livro explora seus eixos temáticos em camadas.
Os traços ardilosos na parede da cela marcam a passagem do tempo, bruto tempo que adquire sua forma animalesca, desumana, de parasitas sombrios, reais ou imaginários, que dividiam o espaço do confinamento. Sua imagem ganha corpo de mulher. Um corpo retraído, sofrido, com medo, encarcerado, mas com o coração saltando do peito: é o elemento humano que faltava na figura anterior.
A causa indígena se despeja em imagens e traços de uma brasilidade de lâmina fina, de devires e resistências que desafiam um olhar colonizador, que nada entende sobre as funduras do Brasil.
É particularmente afável a atenção especial que ela dedica às mulheres: as mulheres indígenas, as mulheres em marcha, as camponesas.
Sua obra celebra o feminismo como num rito báquico tupiniquim: o corpo em movimento, os traços marcantes e os olhares insubordinados daquelas que afirmam o seu existir pela resistência.
Os retratos grotescos de burgueses e suas extravagâncias, às custas do povo, seguem a estética dos artistas engajados de seu tempo. Já os elementos populares são retratados com candura, com traços afetivos, empáticos, com uma aproximação quase infantil de tão pura.
Mas se o povo é representado com formas tão carinhosas, não há ingenuidade na exaltação do povo, onde ela deposita seus sonhos, suas esperanças. Pelo contrário: são retratos delicados, mas afiadíssimos com flechas libertárias, e denúncias assertivas.
Em suma, este livro é um arquivo de imagens que remontam décadas da história da nossa curta democracia, que viram às avessas os momentos mais assombrosos da nossa história moderna, mas também nos enchem de esperança e alento, ao celebrar cada ensejo por uma resistência criativa e potente.
Título: “Desenhos da Resistência – A obra gráfica de uma artista engajada na luta contra a ditadura militar”.
Autora: Marlene Crespo
Editora: Outras Expressões
176 páginas
Preço: R$ 30,00
(O livro será lançado no sábado dia 15 de dezembro, às 15h, na Livraria Expressão Popular, Rua Abolição, 201 – Bela Vista, São Paulo - SP)
Edição: Revista Fórum