O estado de Roraima está, desde o dia 10 de dezembro, sob intervenção federal, condição em que deve permanecer ao menos até o fim do mês. A medida antecipa de certa forma o mandato de Antonio Denarium (PSL), eleito governador em outubro e que assume agora o cargo de interventor, a mando do presidente Michel Temer (MDB-SP).
Semelhante à justificativa dada para a intervenção militar na gestão da segurança pública no Rio de Janeiro, fala-se em Roraima em um "comprometimento da ordem pública" que resultou em uma crise financeira, prejudicando o pagamento de salários de servidores de áreas como saúde, educação e segurança pública, levando também a uma onda de tensão nos presídios locais.
Diferentemente do Rio, porém, Roraima encerra 2018 com uma intervenção que é integral. O estado, que desde 2017 é mostrado na cobertura midiática como a principal porta de entrada de venezuelanos no Brasil, aponta o fluxo migratório como fator de agravamento de sua crise, algo que a professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Roraima (UFRR), doutora em Estudos sobre a América e especialista na questão imigratória, Francilene Rodrigues, rebate e aponta ser consequência de omissão do governo estadual.
"Tem um discurso de responsabilização e, de certa forma, de atribuir (a crise de gestão)aos venezuelanos, mas (Roraima) é um estado que se desresponsabiliza, à medida que deixa de pensar em uma política de segurança, uma política de inclusão social", afirma Francilene reafirmando o argumento de diversos estudiosos que denunciam a falta de ações dos governos federal e estadual para lidar com os problemas sociais que a migração sem o devido respaldo público pode trazer.
Procurar um único responsável pelo "caos" no estado repete a velha estratégia de culpabilização daquele que é mais vulnerável, que se encontra em uma situação de fragilidade, como avalia a coordenadora de programa da ONG Conectas Direitos Humanos, Camila Asano.
"As mazelas de Roraima, a corrupção, o mal uso dos recursos, os problemas graves nos serviços públicos, sejam de saúde ou de segurança, elas já existiam. A chegada dos venezuelanos foi uma espécie de alerta para essas situações que já aconteciam", explica Camila.
Sem indicativos do governo de Nicolás Maduro de alterações da conjuntura geral da Venezuela – o que faz crer que mais cidadãos do país vizinho deverão trilhar o caminho até o Brasil –, as justificativas da intervenção em Roraima, a cerca de 20 dias para o final do ano, abre precedentes para a discussão sobre o futuro das políticas de acolhimento de migrantes e refugiados, a partir da posse do próximo governo estadual, que elegeu-se pelo mesmo partido e com o mesmo discurso do futuro presidente, Jair Bolsonaro (/b), de intolerância e preconceito contra países latino-americanos.
Hoje, de acordo com o Comitê Federal de Assistência Emergencial, entram por dia cerca de 300 venezuelanos pelas fronteiras de Roraima. A situação preocupa a professora da UFRR principalmente pela condição das mulheres, muitas delas jovens e algumas, grávidas. Esse grupo, pela falta de políticas públicas que promovam acolhimento e dignidade aos migrantes, acabam mais suscetíveis ao tráfico de pessoas, à adoção ilegal de suas crianças, ao uso e transporte de drogas ilegais, à exploração sexual e ao trabalho em condições análogas à escravidão.
Para especialistas consultados pela RBA, ainda não é possível delimitar de forma precisa sobre qual será o entendimento da próxima gestão federal quanto à imigração. O que se sabe, a partir de entrevistas é que o futuro presidente defende a continuidade da abertura das fronteiras de Roraima aos venezuelanos, cogitando porém a criação de um campo de refugiados e falando em instaurar um controle migratório "mais firme". Mas, para a coordenadora de programas da Conectas, restrições à entrada dessas pessoas no país não produziria uma diminuição no fluxo de imigrantes, ao contrário.
"Criar leis duras, que vão criminalizar a migração, não necessariamente têm um impacto na redução do fluxo migratório, só intensificará o sofrimento da pessoa que decidiu que vai para aquele país, porque ela precisa", afirma Camila. "Medidas para limitar o acesso vão contra o que diz a Lei de Migração brasileira e também a Constituição, que prevê toda uma questão de igualdade de direitos, de um senso de acolhimento que já está celebrado e sistematizado nessas leis".
A recente declaração do futuro ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro, Ernesto Araújo, sobre uma possível saída do Brasil do Pacto Global para a Migração, abre também um capítulo quanto ao futuro das políticas de imigração brasileira que, na análise do professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC), Giorgio Romano Schutte, podem indicar um alinhamento ideológico conservador, como a própria agenda migratória dos Estados Unidos.
"Isso faz parte do distanciamento geral do multilateralismo da ONU, rejeitar essas regras. Mas (quais serão) os atos concretos em Roraima, do Brasil com os venezuelanos, não está tão claro, porque de um lado o Bolsonaro fala em dar asilo, para mostrar que os imigrantes estariam fugindo de um país que seria 'ditatorial', mas por outro lado tem essa 'urgência' de diminuir o fluxo e achar uma solução", avalia Romano.
De acordo com o professor, a questão política e ideológica que unirá o Brasil com os Estados Unidos na arena internacional, favorecerá a imposição de sanções contra a Venezuela que "evidentemente vão levar a um aumento o fluxo de imigrantes. Então, nesse caso, será um tiro no pé, o que é uma contradição desse alinhamento", contesta Romano.
Por acompanhar de perto a situação, Francilene propõe a promoção do acolhimento, o fortalecimento e acompanhamento da interiorização dos venezuelanos e o apoio à criação de emprego e renda.
Além disso, a professora repudia uma intervenção militar na Venezuela, assim como também classifica como prejudicial à população as consequências da intervenção federal decretada por Temer para o estado de Roraima. Em sua avaliação, a postura do Brasil deveria ser de apoiar e estimular a diversificação da base da economia venezuelana, hoje praticamente limitada a ser rentista do petróleo. "A saída que está sendo pensada para a Venezuela, para mim, é a pior possível", lamenta.
Edição: Redação RBAA