Coluna

Não temos outra escolha senão viver como seres humanos

Imagem de perfil do Colunistaesd
Assentamento de refugiados de Kutupalong, em Cox's Bazar, há alguns meses
Assentamento de refugiados de Kutupalong, em Cox's Bazar, há alguns meses - David Azia para ACNUR
É importante escrever, falar e se movimentar por algo melhor

Por Vijay Prashad*

Escrevo a vocês de Seul (Coreia do Sul), uma das hipercidades do planeta. Metade dos 50 milhões de sul-coreanos vive na área metropolitana da capital. Não muito longe do centro da cidade está a zona desmilitarizada que corta as Coreias pela metade. As lideranças políticas do Norte e do Sul continuam sua brava jornada para reduzir a tensão na zona e encontrar formas de unir seus povos. Pessoas sensíveis dessa península querem se afastar de um estado de guerra permanente. Mas mesmo essas pequenas unidades são controladas por terras distantes. No que diz respeito à liderança militar e política de Washington, Japão e Coreia do Sul devem permanecer como Estados clientes do Ocidente, porta-aviões para o cerco do retorno da China ao cenário mundial (veja o primeiro dossiê do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, de março deste ano, e leia meu mais recente relatório aqui).

O vidro e o aço de Seul, como em outras cidades do nosso planeta, não conseguem esconder a pobreza dos bairros periféricos e das casas dos idosos. No início deste ano, no Lancet, um estudo notável previu que as mulheres nascidas na Coreia do Sul, em 2030, serão as primeiras a viver por nove décadas. Isso vem junto com dados da OCDE que mostram que metade da população sul-coreana acima de 65 anos vive na pobreza. Uma estatística maldita para um país rico. Houve uma época em que a Coreia do Sul, um dos Tigres Asiáticos, parecia invencível. Levou um golpe em 1997 com a crise financeira asiática e depois novamente em 2007-08 com a crise global. Sua economia vacilou, sua população caiu nas sombras da pobreza e seu senso de valor declinou.

A rede de assistência social desidratou nas últimas décadas, à medida que a população começou a envelhecer. Prevê-se que, até 2030, a Coreia do Sul seja um dos “países super-idosos” (onde um em cada cinco residentes terá mais de 65 anos). Alemanha, Itália e Japão já são “super-idosos”. O atual presidente da Coreia do Sul – Moon Jae-in – chegou ao poder com base em um programa para combater a crise de bem-estar no país. Seu documento de 100 tarefas políticas (de agosto de 2017) promete “garantir uma vida saudável e decente para os idosos em preparação para uma sociedade envelhecida”. Como isso será feito ainda não se sabe. Muitos idosos na Coreia do Sul dão aos seus filhos parte da sua pensão; se a pensão for aumentada, ela sairá dos impostos pagos por esses mesmos filhos. Sem um esquema vigoroso para taxar as corporações monopolistas, impedir a corrupção por parte delas e tributar os bilionários, não haverá recursos disponíveis para um projeto tão benevolente.

 

A Coreia do Sul tem um problema limitado com a falta de moradia. Já na África do Sul, esse problema é endêmico. Está enraizado na forma como a terra se tornou monopólio da população branca durante o apartheid e na forma como a democracia, após 1994, não chegou ao mercado de terras. É a falta de acesso à moradia que leva à criação de assentamentos informais, não apenas na África do Sul, mas em todo o mundo. Uma estimativa antiga das Nações Unidas sugere que pelo menos um bilhão de pessoas – uma em cada oito – vive em assentamentos informais. Uma consequência da informalidade é a falta de serviços básicos e, portanto, más condições de vida. Aqueles que vivem nesses assentamentos informais são os trabalhadores da cidade, com preços mais baixos se comparados a arranjos de vida mais formais, devido à mercantilização do mercado imobiliário.

A relatora especial das Nações Unidas para a situação dos sem-teto, Leilani Farha, diz que o mercado imobiliário mundial está estimado em 163 trilhões de dólares – um preço que é o dobro do total da economia mundial e muito maior do que os 7 trilhões de dólares em ouro extraídos da terra durante todo o tempo registrado (leia o relatório completo de setembro de 2018 para o Conselho de Direitos Humanos da ONU aqui). O capital privado tem visto o mercado imobiliário como um investimento viável, elevando os preços. A capital vê a terra e a habitação como um investimento, não como um direito humano. Esse é o cerne do problema.

É por isso que organizações como Abahlali baseMjondolo (AbM), o movimento de moradores de favelas da África do Sul, surgiram em 2005. E é por isso que lutam – com unhas e dentes – para proteger os direitos e a dignidade dos trabalhadores que vivem em assentamentos informais. O título dessa carta semanal – não temos escolha senão viver como seres humanos – vem de uma entrevista que o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social fez há algumas semanas com Sbu Zikode, o presidente da AbM. Essa entrevista é o núcleo do nosso 11º Dossiê – A política interna do Abahlali baseMjondolo, o movimento de moradores de favelas da África do Sul. É o nosso dossiê mais forte, uma leitura essencial.

O Dossiê será útil não apenas em outras partes do Sul Global, onde assentamentos informais formam nossas cidades não planejadas, mas também no Norte Global, onde a falta de moradia está aumentando rapidamente. Um novo relatório da instituição de caridade britânica Shelter diz que 130 mil crianças ficarão desabrigadas durante o inverno. O mesmo problema atinge os Estados Unidos da América, onde o Poor People Campaign tenta confrontar as raízes dos sem-teto e da fome (por exemplo, ver sobre o trabalho sobre Levante por Justiça Social).

Preste atenção ao Artigo 25 da Declaração Internacional dos Direitos Humanos: Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle. Todos os anos, 10 de dezembro é reservado para homenagear essa Declaração como o Dia dos Direitos Humanos. É tipicamente um dia avassalador – tantos problemas, tão poucas soluções. E ainda, como escrevi em minha coluna esta semana, há vislumbres de inspiração vindos de Marrakesh (Marrocos) e Rajastão (Índia).

:::Leia o Dossiê #11 sobre a luta dos moradores de favelas na África do Sul


Em Marrakesh (Marrocos), representantes dos países de todo mundo se reuniram para aprovar o Pacto Global pela Migração, uma promessa de que pessoas humanitárias oferecerão políticas sensíveis a pessoas desesperadas. David Azia tirou esta foto (capa) para a Acnur em Cox's Bazar, em um assentamento de refugiados de Kutupalong, há alguns meses.

Em Oslo (Noruega), Nadia Murad e Denis Mukwege dividiram o Prêmio Nobel da Paz. Tanto Nadia quanto Denis são defensores do fim do uso do estupro como arma de guerra. Eles são pessoas corajosas com uma mensagem importante. O discurso de Denis que me tocou: “Fechar os olhos para a tragédia é ser cúmplice. Não são apenas os autores da violência que são responsáveis por seus crimes. São também aqueles que escolhem olhar para o outro lado”. Uma multidão de noruegueses se reuniu em frente ao hotel, segurando velas como sentinelas.


Na Índia, as eleições estaduais testemunharam a derrota do partido de extrema-direita BJP, do primeiro-ministro Narendra Modi. As eleições foram ganhas, como até mesmo o BJP reconhece, pela organização de massa e lutas de agricultores e camponeses, bem como trabalhadores de pequenas fábricas e de creches (anganwadis). Foi a eleição deles. No entanto, como a esquerda é fraca nos principais estados onde as eleições foram realizadas, o voto do povo foi para o Partido do Congresso – menos raivoso em sua política, mas não menos insensível em sua abordagem à vida cotidiana. No entanto, no Rajastão, onde o movimento camponês tem estado forte, dois líderes camponeses – ambos comunistas – ganharam assentos para a legislatura.


Finalmente, dois relatos de dois jornalistas muito corajosos e perspicazes nos dão um vislumbre de como as pessoas comuns se tornam extraordinárias em circunstâncias difíceis.
Vivian Fernandes (Brasil) escreve sobre sua visita às selvas da Colômbia para se encontrar com guerrilheiros do Exército de Libertação Nacional (ELN). “Onde se movem as transnacionais”, como diz Lucia – uma integrante do ELN – “é onde o Estado está”. O Estado é a escavadeira e guarda de segurança das empresas monopolistas. Não se dedica em conceder habitação, educação, saúde e cultura para o povo.

Niren Tolsi (África do Sul) escreve sobre sua visita ao Sri Lanka, onde a insurgência foi morta e a esperança vive apenas nas margens. As expectativas são baixas aqui. Onde estão nossos filhos enterrados?, perguntam as pessoas. “Algo mais do que nada”, diz um trabalhador de direitos humanos.

Hoje é um dia frio e brilhante. Estou lendo um dos grandes poetas da Coreia, Shin Kyong-nim. Ele me lembra como é importante escrever, falar e se movimentar por algo melhor. Mesmo nos piores dias da ditadura militar na Coréia do Sul, ele escreveu com sentimentos sobre a necessidade de organização e mudança. Em 1973, Shin Kyong-nim publicou um livro chamado Nong-mu (Dança dos Agricultores). Nele estava o poema O caminho por onde seguir, traduzido pelo irmão Anthony (An Sonjae):

Nos reunimos, carregando pás enferrujadas e picaretas.
No bosque iluminado pelo luar atrás do depósito de palha,
primeiro nos arrependemos e juramos novamente,
juntos ombro a ombro; finalmente sabíamos qual caminho seguir.
Jogamos fora nossas pás enferrujadas e picaretas.
Ao longo do caminho de cascalho que leva à cidade,
nos reunimos apenas com nossos punhos vazios e respiração ardente.
Nos reunimos com nada além de gritos e músicas.

Nossa imagem da semana (veja abaixo) é de Marielle Franco (1979-2018), que foi assassinada a nove meses atrás.  Marielle - como agora é conhecida -  era uma mulher, negra, mãe, militante LGBT e socialista. Nascida e criada no Complexo da Maré, uma das principais favelas da cidade do Rio de Janeiro, favela onde começou sua militância na luta pelos direitos humanos após ingressar no pré-vestibular comunitário e perder uma amiga, vítima de bala perdida, num tiroteio entre policiais e traficantes no Complexo da Maré. Foi eleita vereadora nessa cidade pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), onde atuou como presidente da Comissão da Mulher e na luta contra a violência policial e intervenção federal do exército nas favelas do RJ. Sua voz - sua voz orgulhosa e alta - contra a violência em sua casa e em lares que se assemelhavam aos dela, como a casa dos membros da AbM na África do Sul, foi o que alguém silenciou. Honramos sua coragem e sua força e perguntamos novamente, quem matou Marielle? Será que os assassinos de Marielle e Gauri Lankesh (Índia), Suad al-Ali (Iraque) e Hrant Dink (Turquia) e tantos outros terão que abrir mão de suas posições de autoridade?

*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor Geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Edição: Luiza Mançano