Em junho de 2016, a maioria dos britânicos decidiu, por meio de um referendo, que o Reino Unido deixaria de fazer parte da União Europeia (UE). A decisão ficou conhecida como Brexit, abreviação de “British Exit”, ou “saída britânica”.
O resultado do referendo, no entanto, se mostrou apenas o primeiro passo de um processo bastante complexo. Passados mais de dois anos desde a decisão, o governo britânico, liderado pela primeira-ministra Theresa May, enfrenta dificuldades para aprovar os termos do acordo e é alvo de críticas e pressões vindas tanto da oposição quanto dos seus próprios correligionários.
Apesar de líderes da UE terem aprovado um acordo em 25 de novembro, o texto ainda deverá passar pelo Parlamento britânico. A votação do pacto deveria ter ocorrido em 11 de dezembro, mas foi adiada para 14 de janeiro.
A cem dias do prazo final para o Brexit, marcado para 29 de março de 2019, o Brasil de Fato preparou alguns tópicos que ajudam a explicar a saída do Reino Unido da UE, suas consequências e quais devem ser os próximos passos no processo de separação.
União Europeia e Reino Unido
Formada por 28 países, dos quais 19 adotam o Euro como moeda comum desde 2002, a União Europeia é um bloco econômico que responde por 20% de todo o volume de importações e exportações do mundo, possuindo um Produto Interno Bruto (PIB) maior que o dos Estados Unidos.
A participação no bloco permite que os países-membros possam trocar produtos e serviços sem a aplicação de taxas e impostos entre si. Além disso, os cidadãos europeus não enfrentam barreiras caso queiram viver e trabalhar em países do bloco.
O Reino Unido, por sua vez, é um Estado insular soberano formado por Inglaterra, Irlanda do Norte, Escócia e País de Gales. O Reino Unido se tornou parte da União Europeia em 1973. Na época, o bloco se chamava Comunidade Econômica Europeia.
Razões para deixar o bloco
A maior parte das críticas à permanência do Reino Unido na UE foram puxadas pelo Partido Conservador, do qual a atual primeira-ministra Theresa May faz parte. Entre elas está o fato de o Reino Unido contribuir financeiramente com o bloco mais do que os demais países; a imposição de normas burocráticas por Bruxelas, sede do Conselho Europeu; e a intensificação da crise humanitária no Oriente Médio e África, que causou o êxodo de milhões de imigrantes para o continente.
Segundo Giorgio Romano, professor de relações internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), de fato o Reino Unido contribui financeiramente mais do que os outros países do bloco, no entanto, “a UE tem um mercado maior que o dos EUA. Se você não tem acesso a esse mercado, os investimentos podem migrar para outro país. A vantagem de participar do bloco é muito grande”.
Para ele, a imigração e as consequências da crise econômica de 2009 foram bastante explorados durante a campanha a favor do Brexit. “Houve uma recuperação que reequilibrou essas contas macroeconômicas, mas não deu uma nova perspectiva para as classes populares. Algumas antigas regiões industriais, de manufatura, com pessoas de certa idade, aceitaram esses argumentos e votaram pelo Brexit achando que isso poderia dar um novo ânimo e que os problemas estavam em Bruxelas”, aponta.
Tensões em torno do acordo
Após a aprovação do Brexit, uma série de negociações entre o Reino Unido e a União Europeia foram iniciadas. As discussões se centraram em como deveria ocorrer a separação. O acordo foi aprovado pela UE em novembro, no entanto, o Parlamento Britânico ainda precisa ratificar ou rejeitar o texto.
Inicialmente, a votação estava marcada para ocorrer no dia 11 de dezembro, no entanto a sessão foi adiada para a terceira semana de janeiro de 2019. Um dos motivos apontados para a mudança no calendário é o de que a premiê sabe que não será fácil conseguir que a maioria do Parlamento aprove o acordo, já que não há consenso sobre o texto nem mesmo entre a base governista.
Em 12 de dezembro, May foi alvo de uma moção de desconfiança movida por seus próprios correligionários. Alguns membros do Partido Conservador contestaram o modo como ela conduziu as negociações do Brexit.
Para aliviar as tensões, a primeira-ministra anunciou que deixará o cargo antes das próximas eleições, que irão ocorrer em 2022 - caso não haja antecipação. A premiê conseguiu se manter no cargo por 200 votos a 117.
Além dos desconfortos causados pela moção de desconfiança, quatro ministros britânicos renunciaram ao cargo em novembro, após May apresentar o acordo com a UE. Entre os membros do gabinete que deixaram o governo está Dominic Raab, então ministro do Brexit. Também renunciaram a ministra do Trabalho e Aposentadoria, Esther Mcvey; o secretário de Estado para a Irlanda do Norte, Shailesh Vara; e a secretária de Estado britânica para o Brexit, Suella Braverman.
Com ou sem a aprovação do acordo, o Reino Unido deverá, por lei, deixar a União Europeia até às 23h (horário de Londres) de 29 de março de 2019, data em que deve começar um período de transição, no qual as partes deverão negociar como será a futura relação depois do Brexit.
A princípio, caso não haja acordo até o esgotamento do prazo, não haverá período de transição. Neste caso, o Reino Unido cortaria todos os laços com a União Europeia de um dia para o outro.
O governo britânico afirmou nessa quarta-feira (19) que começará a cogitar a possibilidade de deixar a União Europeia mesmo que não haja acordo. Além disso, o secretário de Defesa, Gavin Williamson, anunciou que 3,5 mil soldados estarão em alerta caso o Brexit ocorra sem acordo. Segundo ele, a medida visa garantir a segurança em órgãos públicos e aeroportos.
Também nesta quarta-feira, a União Europeia apresentou seu plano caso os dois lados não cheguem a um acordo. O plano de emergência, que contém 14 pontos, busca atenuar os efeitos da separação. As medidas poderiam durar de alguns meses até dois anos.
A proposta pede que os estados-membros da UE "adotem uma abordagem generosa em relação aos direitos dos cidadãos do Reino Unido na UE, desde que essa abordagem seja recíproca do Reino Unido".
O pacote também contempla áreas do setor financeiro, transporte aéreo e terrestre, além da reimplementação de controles alfandegários, veterinários, e de produtos oriundos do Reino Unido.
Irlanda do Norte
Um dos principais pontos de conflito a respeito da aprovação do pacto no Parlamento Britânico diz respeito ao possível fechamento da fronteira entre a Irlanda do Norte (que faz parte do Reino Unido) e a República da Irlanda (país independente, membro da União Europeia).
A ausência de fronteira entre os dois territórios é um dos principais arranjos do acordo de paz de 1998, que encerrou os conflitos entre defensores de um único território irlandês integrado à Grã Bretanha e defensores da República da Irlanda como Estado independente.
Embora sejam Estados distintos, há grande integração econômica entre eles. Além disso, não há postos de controle na fronteira, permitindo a livre circulação de bens e serviços.
Segundo o professor Giorgio Romano, com o Brexit, será ressuscitada a discussão em torno de “qual a posição da Irlanda no Reino Unido. Se você mantém uma fronteira, significa que você tem que ter um outro acordo, porque a Irlanda do Norte faz parte do Reino Unido. Isso gera um problema muito complexo”.
As tensões causadas pelo possível fechamento da fronteira entre os dois países fez com que May tentasse incluir uma cláusula estipulando que uma fronteira entre as Irlandas jamais seria implementada. Por outro lado, manter uma zona livre entre os países impede que o Reino Unido retome totalmente suas fronteiras.
Escócia
Outra consequência causada pelo Brexit é o crescimento do movimento que pede a independência da Escócia. O líder do SNP (Partido Nacional Escocês, na sigla em inglês), Nicola Sturgeon afirmou que irá esperar a oficialização do Brexit para convocar um novo plebiscito sobre a independência do país.
Em 2014, um referendo sobre o mesmo tema foi convocado. Na ocasião, a maior parte dos escoceses decidiu permanecer no Reino Unido. No entanto, pesquisas recentes mostram que a maioria dos escoceses apoiam a independência caso isso levasse à reintegração do país à União Europeia.
Para Romano, no entanto, sair e entrar da UE não é algo simples de acontecer, mas “se a Irlanda do Norte conseguir maior autonomia, é claro que a Escócia também poderá forçar” novas alternativas para se manter forte dentro da Europa.
E agora?
Grande parte dos próximos passos serão definidos quando ocorrer a votação no Parlamento britânico em janeiro. Também segundo Romano, é difícil tentar prever o que deve ocorrer daqui para frente. O professor não exclui inclusive a possibilidade do governo de Theresa May cair, dependendo de quais rumos a votação de janeiro tomar.
Segundo ele, “tem grupos que querem ficar na União Europeia e tem grupos mais pragmáticos, como o atual governo, que já que votaram a saída, querem sair do jeito mais razoável possível. Pode acontecer qualquer coisa.”
Caso não haja acordo, parte do Partido Trabalhista, que faz oposição à May, defende que um novo referendo seja convocado para perguntar novamente se os britânicos querem ou não deixar a União Europeia.
Edição: Vivian Fernandes