Dizem os coletes amarelos, como prelúdio de uma emancipação radical
Por Vijay Prashad*
A foto acima foi tirada em Paris. A palavra de ordem na parede é emblemática: queremos dinheiro enquanto esperamos pelo comunismo. Há um pouco da raiva frívola que vem do grafite de 1968. Há dança e música nas ruas, há o júbilo de finalmente, finalmente, as pessoas estarem dizendo “chega”. Basta, como se diz também em espanhol – chega de ser tratado como a última preocupação pelos políticos e proprietários. O povo quer ser levado a sério. Eles querem que suas queixas e esperanças estruturem o cenário político, e não a avareza das corporações e o cinismo da classe política.
Susan Ram, que está escrevendo um livro sobre a esquerda francesa para LeftWord Books (Nova Déli), tem uma avaliação afiada do movimento dos coletes amarelos (gilets jaunes) e de sua quinta semana de manifestações – Act V Macron Démission (Macron renuncia). É raiva e determinação que define o protesto dos coletes amarelos. Tentativas do presidente Emmanuel Macron de conquistar o país e da polícia de reprimir as manifestações não tiveram sucesso. A polícia parece exausta, o orçamento de Macron cambaleia. Prabhat Patnaik mostra como as concessões da Macron são ilusórias, uma “tática imobilizadora e enganadora”. Como se recusa a taxar os ricos, Macron pedirá dinheiro emprestado para conceder algumas exigências e colocará as finanças da França em desordem; depois, fingirá tristeza quando ele ou seu sucessor defenderem a austeridade. Esse é o caminho dos formuladores de políticas neoliberais. É o que Prabhat expôs para nós em nosso Dossiê nº 7.
Queremos dinheiro, dizem os coletes amarelos, como prelúdio de uma emancipação radical.
Em Pequim (República Popular da China), encontro um funcionário – um velho amigo – que me diz que os protestos dos coletes amarelos terão similares por toda parte, inclusive na Ásia. A política neoliberal comeu a sociedade, canibalizando os tendões que ligam as pessoas umas às outras e empobrecendo a vida cotidiana. Esse é um problema – ele admite – mesmo na China, onde as formas sociais revolucionárias pós-1949 não são mais levadas a sério.
A palavra de ordem de Deng Xiaoping em 1983 – deixe algumas pessoas enriquecerem primeiro (rang yi bu fen ren xian fu qi lai) – está datada. É também mal compreendida. É fácil ter uma visão estereotipada da China – com opiniões que vão da crença de que é um país totalmente capitalista a de que é um bastião maoísta. Nenhuma delas é totalmente correta. As aspirações desenvolvidas pela Revolução de 1949 continuam – o sentimento de que ninguém deve ser pobre, sofrer privações e que deve ser tratado com dignidade, persiste. Para se tornar rico, não é necessário ser capitalista. Entre os trabalhadores, há o entendimento de que ninguém quer viver, por gerações, na pobreza.
O que está faltando, diz um professor sênior, é o espírito coletivo produzido pela Revolução de 1949. Todos os processos revolucionários perdem sua energia, são sugados pelos problemas cotidianos de distribuição de recursos e da burocracia do poder. Ler os textos de Lênin a Ho Chi Minh e a Mao Tse Tung, escritos nos anos posteriores à revolução, é instrutivo. Todos avisam sobre essa perda de energia, esse sentimento do distanciamento entre autoridades e o povo. É um problema observado pelo atual premiê chinês Xi Jingping, que defendeu o estudo do marxismo e pediu novos valores no governo. Canalizar as aspirações de ganho individual para o desenvolvimento social não é uma questão simples, especialmente porque há um impulso cultural global para reduzir a personalidade humana a um consumidor.
Na terça-feira (18/12), visitei o Grande Salão do Povo e o Museu Nacional da China. Há uma celebração do 40º aniversário da era da reforma. Em 1978, o Terceiro Plenário do 11º Comitê Central do Partido Comunista foi realizado no Hotel Jingxi, na mesma rua da Praça Tiananmen. Foi neste Plenário que o líder do partido, Deng Xiaoping, pediu a abertura da economia chinesa e a entrada de forças de mercado na economia. Pouco depois dessa reunião, Deng se reuniu com o primeiro-ministro do Japão, Masayoshi Ohira, a quem ele disse que o povo chinês estaria confortável (xiaokang) até 2025. Na celebração desta semana, o presidente chinês Xi Jinping aplaudiu as três fases da modernidade chinesa. Movimento de 1911, a Revolução de 1949 e a Era da Reforma iniciada em 1978. Esse desenvolvimento permitiu que a China – um país pobre e agrícola – quebrasse a profunda consciência da subserviência feudal e erradicasse a fome. Meu relatório do Grande Salão e do Museu está aqui.
Os problemas permanecem, alguns deles muito graves, como os acontecimentos em Xinjiang e a detenção de números não divulgados da minoria Uyghur; a prisão de estudantes marxistas que foram oferecer solidariedade a trabalhadores da Jasic Technology em Shenzhen. É difícil imaginar a promoção do marxismo ao mesmo tempo em que se violam princípios básicos marxistas, como os direitos de minorias e a organização dos trabalhadores.
A pintura acima é um detalhe de um grande trabalho feito à tinta por Tang Yongli, instalada no Museu em 2015. Mostra o primeiro comitê central do Partido Comunista, em 1949.
A diferença entre os dilemas da China, em um extremo da Ásia, e o trauma do Iêmen, no outro extremo do continente, é significativa. O Iêmen continua à beira da fome, com mais da metade da população incapaz de sobreviver. Essa é a consequência da loucura da guerra – a guerra dos sauditas e dos Emirados. Na semana passada, um acordo para reduzir o conflito foi assinado entre as facções iemenitas, mas sem assinatura dos sauditas e emirados. A ONU acredita, porém, que isso possa abrir caminhos. Minha coluna esta semana investiga a guerra. Autoridades chinesas dizem que estão ansiosas por estabilidade na Península Arábica, já que a guerra interrompe sua iniciativa da Rota da Seda (One Belt, One Road). A pressão de todos os lados nos sauditas e emirados – em particular – é importante. O Senado estadunidense ter votado de forma a não permitir que os Estados Unidos sejam beligerantes nessa guerra é parte desse processo.
A pintura acima é de Hakim al-Hakel, um dos artistas mais ilustres do Iêmen. Ele está agora exilado na Jordânia. Al-Hakel pintou uma série de retratos de iemenitas, uma aura nostálgica em torno deles. “Eu sinto que a cidade iemenita vive dentro de mim”, diz ele.
O compromisso da China com fontes de energia não baseadas em carbono é louvável. Países como a China, que continuam a ter um enorme número de pessoas com aspirações comuns, deixaram claro que não são os principais responsáveis pela mudança climática e que o orçamento de carbono que resta deve dar prioridade aos países em desenvolvimento. Essa tem sido a posição de referência nas negociações.
É o que o “mundo desenvolvido” nega. Na reunião em Katowice (Polônia), o mundo em desenvolvimento sofreu uma séria derrota. T. Jayaraman e Tejal Kanitkar, do Instituto Tata de Ciências Sociais, escreveram que o objetivo das negociações não foi abordar a mudança climática, mas “garantir que o mundo, no clima e no comércio, permaneça desigual”. “Acredito que, em uma reflexão mais aprofundada”, disse Jayaraman, “o resultado dessas negociações é uma derrota estratégica para a grande maioria dos países em desenvolvimento”.
Na ilha de Naoshima (Japão), Shinro Ohta construiu parte de seu projeto Shipyard Works. A foto acima é de Stern With Hole (1990). É uma premonição do que permanecerá depois que os humanos forem extintos.
Preocupações vêm do Brasil, onde seu novo presidente – Jair Bolsonaro – fez comentários imprudentes sobre a derrubada da floresta amazônica, a maior floresta tropical do mundo. A segunda maior é a da República Democrática do Congo (RDC) – que armazena 8% do carbono florestal global. A RDC é rica, mas o seu povo é pobre (está classificado na posição 176 de 189 no Índice de Desenvolvimento Humano, do Pnud). Kambale Musavuli do Amigos do Congo me conta sobre o “fluxo contínuo de coltan, cobre e cobalto do Congo, e outros minerais estratégicos que são vitais para as principais indústrias globais”. Você não poderia ler esta carta semanal sem o coltan contido em seu smartphone. A guerra tornou-se a cortina de fumaça para o roubo dos recursos da RDC, o empobrecimento de seu povo e a lenta degradação de sua floresta tropical.
No domingo, 23 de dezembro, o povo da RDC irá votar em um novo líder. Violência e corrupção caracterizam a eleição. Kambale Musavuli pergunta: “O povo congolês consegue mudar fundamentalmente sua condição desesperadora? Eles estão presos na pobreza abjeta e conflitos das elites locais, em conluio com corporações multinacionais. As riquezas do Congo estão sendo saqueadas”. Ativistas do lado bom da história estão desaparecidos. Kambale aponta para a determinação dos jovens, que muitas vezes estão nas ruas, para produzir uma RDC mais justa, uma RDC para seus 80 milhões de habitantes e para suas terras e não para seus bilionários, como George Forrest e Moises Katumbi, Youssef Mansour e Jean-Pierre Bemba ou uma RDC para as corporações multinacionais como Glencore e Banro.
A pintura acima é o congolês Zemba Luzamba. Intitula-se Paparazzi. É um pequeno gesto sobre a falta de interesse da mídia na RDC, o epicentro da destruição capitalista do planeta.
A imagem abaixo é de Andrée Blouin (1921-1986), feminista, pan-africanista e ativista anticolonial. Ela foi fundamental para a luta de independência do Congo, formando o primeiro governo livre do Congo junto a Patrice Lumumba. 'Quero que a África seja amada”, disse. 'Falo do meu país, África, porque quero que seja conhecida. Não podemos amar o que não conhecemos. Conhecimento vem primeiro, depois vem o amor. Onde há conhecimento, certamente haverá amor”.
Falando sobre os impulsos destrutivos do capitalismo: Lisa Girion, da Reuters, escreveu uma matéria incrível sobre como a Johnson & Johnson (receita de 2017: 76,5 bilhões de dólares) ocultou as propriedades cancerígenas em seu icônico talco para bebês. Essa é uma história sobre como o desejo de lucros das empresas supera todas outras emoções humanas, como zelar pela vida. O problema é o amianto – ou tremolita, como pode se apresentar. Em 1969, William Ashton, da Johnson & Johnson, escreveu para perguntar a um médico da empresa: “Historicamente, em nossa empresa, tremolita tem sido ruim. Quão ruim é a tremolita médica, e quanto dela pode ser usada de forma segura como base para um talco que podemos desenvolver? O médico respondeu que tremolita não deveria ser usada. Mas continuou a ser usado, colocando os “pulmões dos bebês” – como o filho do fundador da empresa colocou – em risco. É dinheiro que é mais importante que a saúde das crianças. Essa é a bússola moral desse sistema.
Não admira que os coletes amarelos, na França, e os fazendeiros, na Índia, saiam às ruas. Não admira que os jovens da RDC queiram se juntar a eles.
*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano. Diretor Geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Edição: Luiza Mançano