Conectividade

Investir no 5G não é fundamental para equilibrar quadro desigual de acesso à internet

Segundo Flávia Lefrève, do Conselho Gestor da Internet do Brasil, ainda tem espaço para melhorar e democratizar com o 4G

Brasil de Fato | São Paulo |
Cerca de 60 milhões de pessoas não tem nenhum tipo de acesso à internet
Cerca de 60 milhões de pessoas não tem nenhum tipo de acesso à internet - Bruno Fortuna/Fotos Públicas

Entrevistado pelo portal UOL no fim do mês passado, o novo presidente da Anatel - Leonardo Euler de Morais - afirmou que quando se trata da implementação da nova rede 5G no país, a sociedade brasileira terá de escolher entre quantidade ou qualidade. O problema, segundo ele, é que se a licitação for feita de forma a beneficiar muitas operadoras, o espectro de ondas destinado à nova tecnologia (3,5GHz) seria dividido entre elas e, consequentemente, a velocidade cairia. 

“Nós só temos um desafio, um trade off [conflito de escolha], que é entre competição e eficiência espectral”, disse o presidente na referida entrevista. Por essa lógica, a Anatel considera licitar a banda 5G para exploração de apenas duas operadoras, o que aumentaria a velocidade na qual as prestadoras de serviço poderiam operar, mas sem garantias de que os preços seriam acessíveis à maioria da população.

Flávia Lefrève integrou o Conselho Consultivo da Anatel e hoje é representante do terceiro setor no Conselho Gestor da Internet do Brasil. Sobre essa questão ela diz:  “O mercado de acesso à internet na telefonia móvel já é muito concentrado. 85% do market share está na mão de três prestadores: Claro, Vivo e Tim. Aliás, isso é o contrário do que se previa em 1997, quando a Lei Geral das Telecomunicações abriu espaço para as privatizações na área”

“Se a Anatel está dizendo que teremos que escolher entre quantidade e qualidade, ela tem que se explicar. Porque o fato é que, quando a gente tem pouca competição, a consequência disso é uma qualidade menor e um preço maior”, continua ela. 

Em 2018, a receita bruta do setor de telecomunicações no Brasil foi de R$ 176 bilhões. De longe, a telefonia móvel é o segmento mais lucrativo entre todas as áreas do setor, com faturamento de R$ 75 bi, ou 42% do total. As gigantes do setor são, no geral, parte de conglomerados de telecomunicações internacionais. A Tim pertence à Telecom Italia, a Claro pertence à mexicana América Móvil e, no Brasil, engloba também NET e Embratel. A Vivo, por sua vez, é parte da espanhola Telefónica SA.

A Huawei detém hoje a tecnologia mais avançada para instalação das redes 5G no mundo todo. A nova geração de transmissão de dados via internet (sucessora do 2G, 3G e 4G) promete uma revolução na maneira como os seres humanos vivem em rede, trazendo conexões de até 20 gigabits/segundo, que possibilitariam a chamada internet das coisas.

“Acesso desigual e antidemocrático”

Discutir a implementação de novas tecnologias de rede no Brasil passa também, em um país desigual e em desenvolvimento, por discutir a democratização do acesso à internet. Hoje 69,3% dos domicílios brasileiros estão de alguma forma conectados à rede mundial de computadores, o que é um avanço quando comparados com os números de 2004, em que este patamar se encontrava na casa dos 12%. Ainda assim, 60 milhões de pessoas nas periferias e regiões distantes do país não têm acesso nenhum, e boa parte daquelas que conseguem se conectar de alguma forma nem sempre são capazes de arcar com planos que lhes permitam navegar livremente. 

“Os dados do CETIC de 2017 mostram que, na classe C, 53% dos usuários de internet só acessam exclusivamente por dispositivos móveis. Como essas são classes de baixa renda, esses consumidores contratam planos que dão um acesso muito restrito, porque os planos têm um volume de dados muito baixo, mas que liberam o facebook e o whatsapp, então você têm uma associação comercial entre os provedores de internet e os portais”, diz Lefrève. “As pessoas acabam tendo um acesso à internet de muito baixa qualidade, desigual e antidemocrático”, conclui a pesquisadora.

Analisando os dados fornecido pelo Ministério da Tecnologia, Inovação e Comunicações, é possível constatar uma desigualdade grande no número de acessos à internet móvel por habitante nos estados. São Paulo, por exemplo, tem 1,42 acessos por habitante, enquanto o estado de Pernambuco tem 0,5. Mais ou menos entre eles, temos Rio de Janeiro com uma média de 1,19 e Rondônia, com 1,04 acessos por habitante.

Perspectivas

Talvez a dúvida mais importante que fica no ar quando tratamos das redes 5G no Brasil seja a seguinte: qual seria o melhor caminho, em termos de políticas públicas, para garantir uma cobertura ampla, barata e eficiente?

O professor Silvio Mielli, do departamento de jornalismo da PUC de São Paulo, fala sobre essa perspectiva: “Eles entram para explorar. A esfera virtual é como um imenso continente, em que eles entram para explorar de todas as formas, só que sem nenhuma contrapartida. [Seria necessário] a contrapartida do investimento, pelo menos para zerar esse jogo e todos terem uma internet um pouco mais veloz, e os ‘mais lentos’ poderem ganhar um pouco mais e disputar vagas de emprego, se colocar melhor. Eu tô falando de emprego, nem tô falando de pedir Uber ou pizza pelo aplicativo. Hoje, se você investe em tecnologia igualitariamente, você não está fazendo nenhum projeto de socialismo, você tá melhorando sua economia”

Flávia Lefrève aponta algumas coisas a respeito do posicionamento da Anatel no tema das licitações da área: “O que significa essa redução na qualidade do 5G? Porque essa tecnologia é muito superior ao 3G e ao 4G? Então, ainda que seja inferior, ele será inferior a ponto de comprometer a qualidade do serviço? Isso precisa ficar claro. Outra coisa: se existe essa dicotomia entre quantidade de prestadores e qualidade do serviço, a Anatel tem a obrigação de garantir o mercado competitivo - algo que está previsto na Lei Geral da área - e a qualidade do serviço, determinando o compartilhamento [entre as operadoras] das infraestruturas”

Quando questionada sobre a possibilidade de implementação de políticas públicas para o setor, ela finaliza dizendo que não é imprescindível apostar no 5G para equilibrar o quadro desigual de acesso à internet visto hoje no país: “Tendo em vista essa realidade, a gente ainda tem muito o que melhorar no 4G. Ainda se pode melhorar muito, democratizar muito com essa tecnologia, mas o mercado está desesperado por conta da internet das coisas. Primeiro por conta da venda de produtos, mas também como forma de vender nossos dados, o que é um grande ativo no mercado hoje”.

Mieli, por sua vez, aponta a importância que as novas tecnologias já têm - e terão cada vez mais - para a vida dos trabalhadores: “Eu presto muita atenção no setor terceirizado da PUC. Eles implantaram um serviço que obriga os funcionários da manutenção a preencher um formulário das salas que limparam, pelo celular. Ele é obrigado a baixar um aplicativo da empresa, mas a empresa dá um upgrade no celular dele para que ele possa utilizar propriamente”, diz. “Todo o acesso ao emprego e aos novos fluxos do capital estão se dando na esfera virtual. Os mais pobres já perceberam isso e tentam, a duras penas, ocupar esse território”

Edição: Tayguara Ribeiro