Aos 86 anos, ela acaba de lançar obra que reúne suas produções do período referente ao regime militar
O ano de 2018 marcou os 50 anos desde o decreto do Ato Institucional n° 5 pela ditadura militar brasileira (1964 - 1985). Contabiliza-se, segundo a Comissão Nacional da Verdade, que 180 pessoas tenham sido assassinadas durante o regime.
Décadas transcorridas, a sociedade brasileira conta com sobreviventes desse período sombrio que seguem reivindicando a memória do passado para que as mesmas violências não sejam cometidas no presente.
Uma dessas histórias é a de Marlene Crespo. Artista plástica natural do Rio de Janeiro, aos 86 anos ela lançou o livro Desenhos da Resistência - obra gráfica de uma artista engajada nas lutas sociais, com obras que denunciam o sofrimento do povo durante a ditadura e destacam a luta de mulheres, operários, estudantes e outros setores populares.
"O trabalho que divulguei não tinha uma declaração política direta, mas era ligado diretamente a coisas simples, às pessoas. Não era um livro diretamente político, mas ligado ao povo, como deve ser a nossa crença", explica a autora.
Formada em línguas, foi nas artes plásticas que Marlene encontrou a felicidade. Para sustentar a si e à família, porém, trabalhou como professora e revisora de textos.
Na obra mais recente, é possível conferir textos com a trajetória da artista e uma produção que nunca se adequou a nenhuma convenção estética, e seguiu fiel aos seus ideais.
"Minha representação nunca foi uma coisa direta, ideologicamente. Ela representou um sentimento mais profundo e constante, porque a minha obra, desde o princípio, continua igual. Eu não segui as modas", conta. "Tinha uma hora que tinha que ser abstrata e acabou. Eu nunca fui, continuei no meu caminho."
Ao final da década de 1960, Marlene Crespo também cursava Artes Plásticas na Universidade do Rio Grande do Sul (URGS), em Porto Alegre. Apesar de fazer apenas duas matérias, por conta do curto tempo, participou do movimento estudantil e foi detida ao lado de outras centenas de estudantes no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP) — o conhecido Congresso de Ibiúna — no ano e 1968.
Mulher mãe, trabalhadora e militante
Em março de 1973, a artista assistiu à violência do Estado que vitimou milhares de brasileiros e tirou a vida de muitos. Marlene era militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que atuava na clandestinidade, desde 1964 e foi presa pelo regime.
"Quando fui presa — isso eu entendi depois — eles estavam informados que eu era do partido, mas não tinha tempo de atuar e apenas acompanhava. Eles queriam basicamente a informação sobre um companheiro que queriam prender. Eu não dei as informações e só passei por uma tortura. Fiquei para morrer, mas eles não queriam que eu morresse", relata.
No total, ela passou três semanas nas dependências do DOI-Codi, órgão de repressão dos governos militares. Contou com companheiros de prisão como a militante feminista Amelinha Teles e o deputado constituinte José Genoíno. Por conta das torturas, foi internada no Hospital das Clínicas de São Paulo, e acabou sendo liberada.
Mãe de três filhos, à época com 17, 15 e 14 anos, Marlene participava das atividades do partido, mas de forma comedida, já que a tarefa de sustentar a família e cuidar dos meninos a despendia muito tempo.
"Minha militância era de duas maneiras: o partido confiava em mim, na minha pessoa, no que eu fazia, mas, nas minhas condições, eu não tinha tempo de participar muito. Em todo caso, a questão da Guerrilha do Araguaia: se eu não tivesse três filhos para cuidar, teria morrido, como morreu a turma que foi para lá", conta a artista plástica.
Apesar do desdobramento da tripla jornada como mãe, trabalhadora e militante, Marlene não deixou de ajudar aos companheiros que lutavam para restaurar a democracia no país. O partido solicitava pesquisas sobre assuntos que serviriam de apoio aos guerrilheiros do Araguaia, e assim ela fez.
Quando pensa no ensinamento que tirou do período da ditadura militar, Marlene Crespo destaca um sentimento bastante almejado pelas pessoas, mas por vezes difícil de alcançar: o da tranquilidade consigo mesma por ter permanecido fiel a seus companheiros.
"O que me marcou é que não me senti culpada porque não falei nada, então me senti pessoalmente bem. É claro, acompanhando, sofrendo, mas com a consciência tranquila", relata.
O livro da autora, Desenhos da Resistência, pode ser encontrado no site da editora e livraria Expressão Popular para venda.
Edição: Guilherme Henrique