A reforma agrária durou menos de três dias no governo do presidente Jair Bolsonaro e não tem data para voltar a ser executada. As superintendências regionais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) receberam, na última quinta-feira (3), memorandos determinando a interrupção de todos os processos para compra e desapropriação de terras. De acordo com o Incra, 250 processos em andamento estão suspensos.
Movimentos sociais, servidores de carreira do Incra e especialistas na questão fundiária avaliam que a suspensão é o primeiro passo do governo Bolsonaro para extinguir a reforma agrária. Dos quatro funcionários do Incra ouvidos pela Repórter Brasil, que pediram para não serem identificados por temerem retaliações, dois acreditam que a medida revela a intenção do novo governo de acabar com a reforma agrária. Há também entre eles quem avalie que a suspensão é uma maneira de o governo ganhar tempo até serem editadas medidas que favoreçam o agronegócio.
O Incra informou que a interrupção é temporária, mas não detalhou o prazo de duração da medida. “Conforme consta no corpo do próprio documento, os processos foram sobrestados enquanto não se define a nova estrutura do Incra”, diz nota enviada à Repórter Brasil. Quando questionado quais os critérios adotados para a suspensão da aquisição de terras para a reforma agrária, o instituto disse que “não há que se falar em critérios técnicos, mas sim em medidas administrativas que visam o funcionamento das atribuições do Incra”.
Para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a medida pode aprofundar a violência no campo. “Se isso acontecer [a extinção da reforma agrária], haverá mais confrontos no campo”, avalia o dirigente nacional do MST, Alexandre Conceição. “Os latifundiários venceram junto com Bolsonaro e o que eles querem é mais concentração de terras nas mãos de poucas pessoas”, avalia.
Um segundo memorando, também enviado em 3 de janeiro, determina que as superintendências regionais disponibilizem, até a próxima quarta-feira (9), a relação de todos os imóveis que podem ser destinados para a reforma agrária. O documento justifica que as mudanças se devem à alteração na estrutura do Incra, que no governo Bolsonaro deixa de estar ligado à Casa Civil e passa para o Ministério da Agricultura. “A equipe de transição da nova estrutura necessita conhecer a demanda existente no tocante a obtenção de imóveis rurais a serem incorporados ao Programa Nacional de Reforma Agrária”, diz o documento.
Um terceiro memorando reforça o pedido para suspender os processos de compra e de desapropriação de terras, com exceção daqueles que tramitam na Justiça, e detalha que a determinação também vale para as áreas da Amazônia Legal, que inclui nove estados banhados pela bacia hidrográfica do Rio Amazonas.
Dois memorandos foram assinados pelo ex-diretor do Incra, Clovis Figueiredo Cardoso, ligado ao PMDB do Mato Grosso e indicado na gestão do ex-presidente Michel Temer. Clóvis foi exonerado após a divulgação dos documentos.
O terceiro documento foi assinado por Cletho Muniz de Brito, diretor de ordenamento da estrutura fundiária do órgão. Brito foi deputado estadual em Rondônia, onde adotou o nome político de “Brito do Incra”.
A reforma agrária vem perdendo espaço no orçamento do governo federal desde 2015. Naquele ano, o Congresso aprovou gastos de R$ 2,5 bilhões para o programa Reforma Agrária e Governança Fundiária. Para 2019, a Lei Orçamentária Anual traz a previsão de gastos de R$ 762 milhões – corte de 70% em quatro anos. Essa política inclui não apenas a aquisição de terras para o assentamento das famílias, mas também gestão do cadastro rural, regularização da estrutura fundiária, desenvolvimento dos assentamentos e projetos de assistência social, educação e pacificação no campo.
Em 2018, o Incra tinha à disposição mais de R$ 34 milhões para a obtenção de novas propriedades rurais para criação de assentamentos, mas gastou somente R$ 25 milhões, segundo nota do Instituto.
O secretário ruralista
O responsável pelo programa de reforma agrária no governo Bolsonaro é o presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antônio Nabhan Garcia, nomeado secretário especial da Regulação Fundiária do Ministério da Agricultura. Garcia foi protagonista no embate com o MST durante a década de 1990 nas disputas por terra no Pontal do Paranapanema, em São Paulo. À época, ele foi acusado por um fazendeiro de organizar milícias privadas na região e chegou a ser convocado a prestar esclarecimentos à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Terra.
“Colocaram a grande raposa tomando conta do galinheiro”, avalia o professor da Universidade Federal da Paraíba, Marco Mitidiero, referindo-se a Garcia. O professor pesquisa a questão fundiária brasileira e, na sua análise, a suspensão da reforma agrária faz parte do plano do governo Bolsonaro para bloquear a desapropriação de terra. Mitidiero entende que os movimentos sociais urbanos e rurais estão se articulando e que a medida do Incra deve gerar uma nova onda de ocupações de terra.
“Não queremos violência. Queremos reforma agrária”, frisa Conceição, do MST. Ele destaca que a prioridade do MST é cuidar da segurança das famílias, mas que o aumento da concentração fundiária leva, inevitavelmente, a um número maior de ocupações.
O dirigente do MST avalia que a natureza do governo Bolsonaro é provocar o conflito, mas que o movimento vai buscar a reforma agrária nos governos estaduais, no Judiciário e nas esferas onde houver diálogo. “A reforma agrária resolve dois problemas. Dá teto e alimento para os trabalhadores”, afirma
A violência no campo explodiu em 2017. De acordo com relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram registrados 1.431 conflitos no campo com 71 mortes. É o maior número de assassinatos desde 2003, quando 73 morreram por conflitos rurais. Os números de 2018 ainda não foram divulgados pela CPT.
Para a Jeane Bellini, coordenadora da CPT, os avanços dos ruralistas na política institucional têm reflexo imediato na violência no campo. “Cada vez que a bancada ruralista cresce em influência, os grileiros avançam”, afirma. Bellini cita Anapu, no Pará, onde a missionária Dorothy Stang foi assassinada em 2005. Lá, nos últimos três anos, 16 trabalhadores rurais foram assassinados em conflitos por terra.
A medida do novo governo afeta acampamentos em praticamente todos os Estados do país. Entre os trabalhadores rurais que podem ser obrigados a postergar o sonho à terra, estão as 350 famílias que vivem no projeto de assentamento conhecido como Mata Preta, em Anapu. O local conta com duas escolas e 150 alunos. As famílias vivem da plantação de culturas diversas e da extração de recursos da floresta. Na área que ocupam, preservam 80% da vegetação nativa.
Edição: Repórter Brasil