Em julho de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenou o Estado Brasileiro pela falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pela prisão, tortura e morte do jornalista da TV Cultura Vladimir Herzog. O crime ocorreu em 1975 após o jornalista se apresentar voluntariamente às autoridades do DOI-CODI, centro de inteligência e repressão da ditadura.
O país já havia sido condenado pela CIDH em 2010, no caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia). Na ocasião, o tribunal decidiu que o Estado deveria responder pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros da guerrilha e camponeses da região.
Nos dois casos, as investigações e a possibilidade de punir criminalmente os militares envolvidos foram barradas pela Lei de Anistia (Lei nº 6.683). Sob a justificativa de perdoar crimes cometidos tanto por agentes a serviço do Estado, quanto por militantes que resistiram aos regimes de exceção, leis como essa se tornaram o maior entrave para julgar violações de direitos humanos cometidas, quase em sua totalidade, por oficiais.
Embora as leis de anistia tenham sido utilizadas como mecanismo para a autopreservação dos militares ao final de diversos governos ditatoriais na América Latina, o Brasil parece ter parado no tempo quando comparado a alguns países vizinhos, como o Chile, que apesar de possuir uma uma lei de anistia em vigor, apresentou diversos avanços para a condenação de crimes já durante os primeiros anos de redemocratização.
Chile
Ainda em 1990, ano em que chegou ao fim a ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet, foi instituída no Chile, pelo então presidente Patricio Aylwin, a Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação. Entre seus objetivos, estava prestar esclarecimentos a respeito das violações de direitos humanos cometidas entre 11 de setembro de 1973 e 11 de março de 1990, período em que o governo ditatorial esteve à frente do país.
O relatório final emitido pela comissão em fevereiro de 1991 apontou a ocorrência de 2.130 casos de violações de direitos humanos durante a ditadura de Pinochet. Um segundo levantamento, feito em 2011 pela Comissão Nacional de Prisão Política e Tortura, mostra que esse número é muito maior: mais de 40 mil pessoas foram vítimas do regime e 3.225 estão mortas ou desaparecidas.
Entre os casos que ajudaram a definir alguns dos rumos tomados nos primeiros anos do pós-ditadura está o do estudante Juan Cheuquepán e do agricultor José Julio Llaulén Antilao. Após serem levados para uma delegacia no município de Perquenco, os dois nunca mais foram vistos.
Os juízes do caso decidiram que o marco temporal da Lei de Anistia chilena (Decreto Lei nº 2191), que perdoa crimes ocorridos entre setembro de 1973 e abril de 1978, não poderia ser aplicado por se tratar de um crime de sequestro, qualificado como “delito permanente”, uma vez que as vítimas ainda não foram encontradas.
Os responsáveis foram condenados pela Corte de Apelações de Temulco em 1994, o que abriu precedentes para que outros casos envolvendo desaparecimento forçado fossem julgados da mesma forma.
Em 1998, a Suprema Corte decidiu que a Lei de Anistia não poderia ser aplicada aos casos de violações de direitos humanos. A medida permitiu que uma série de investigações anteriormente barradas pudessem ter prosseguimento.
Segundo Miguel Vásquez Plaza, juiz especial para casos de violações de direitos humanos da Corte de Apelações de Santiago, após a Suprema Corte estabelecer o que eram crimes de lesa-humanidade, julgar delitos cometidos por agentes do Estado passou a ter menos entraves.
Em uma entrevista concedida ao Brasil de Fato, Vásquez Plaza afirmou que após a decisão foi possível "condenar os militares que participaram de violações" e que, atualmente, somente por meio da aplicação de normas e tratados internacionais que foram incorporados ao ordenamento jurídico do país já “é possível ditar as condenações dos violadores de direitos humanos”.
O juiz foi responsável por uma série de condenações importantes em 2018, entre elas, a de oito ex-militares envolvidos no assassinato do músico chileno Victor Jara, em 1973. Além disso, condenou 53 agentes do Estado por responsabilidade na execução de membros do Partido Comunista, em 1976.
Segundo ele, atualmente “não há obstáculos no Chile [para punir violações de direitos humanos], salvo os relacionados a aspectos processuais, devido à permanente recusa dos incriminados em reconhecer os fatos estabelecidos em relação à violações”.
Brasil
No caso do Brasil, avanços para reparar os crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985) foram pontuais e tiveram prosseguimentos lentos quando comparados aos que ocorreram em alguns países vizinhos.
O primeiro deles aconteceu em 1995, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso assinou a Lei Nº 9.140, que institui a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, órgão responsável por localizar e reconhecer os corpos de vítimas de crimes cometidos por agentes da repressão entre setembro de 1961 e agosto de 1979. A lei também vincula um valor para reparar os familiares dos desaparecidos.
Além disso, após a condenação do Estado Brasileiro no caso Araguaia, foi criada, em 2011, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que entre 2012 e 2014 investigou violações de direitos humanos cometidas entre setembro de 1946 e outubro de 1988. Por fim, em 2016, foi promulgada a Convenção Interamericana Sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas pela então presidente Dilma Rousseff.
Nas duas condenações contra o Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) considerou que ocorreram crimes contra a humanidade, que, por definição, são imprescritíveis e não passíveis de serem anistiados. Na ocasião, a Corte também ordenou que o país revisasse a Lei de Anistia. Por ter ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 1992, e reconhecer a jurisdição da CIDH, o Brasil, em tese, deveria cumprir as decisões do tribunal.
O país teve a oportunidade de rever a Lei de Anistia quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153), movida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A entidade pedia que o Supremo anulasse o perdão concedido aos militares acusados de crimes contra humanidade. No entanto, o STF decidiu, por 7 votos a 2, a favor da constitucionalidade da lei. Um novo pedido de revisão, através da ADPF 320, dessa vez de autoria do PSOL, foi enviado ao STF em 2014.
Reabertura do caso Herzog
Em julho de 2018, por conta da condenação mais recente da CIDH, o Ministério Público Federal de São Paulo reabriu as investigações sobre o assassinato de Vladimir Herzog. Uma vez que a Lei de Anistia segue em vigor, é difícil dizer se o caso terá prosseguimento desta vez. Uma investigação semelhante, aberta pelo Procurador da República Marlon Alberto Weichert, foi encerrada em 2009.
Segundo Weichert, geralmente não há nenhuma consequência material caso o Estado brasileiro descumpra determinações da CIDH. No entanto, “o que acontece é que recai sobre o Brasil a pecha de ser um país que não respeita as decisões de uma corte internacional, que é uma obrigação assumida espontaneamente, constitucionalmente”.
O procurador também explica que todos os juízes que receberem o caso Herzog estão obrigados a cumprir a determinação da CIDH. No entanto, segundo ele, a decisão do STF de não anular a Lei de Anistia pode gerar incongruências.
"Se o Supremo não disser como é que ele compatibiliza sua decisão anterior [manter a Lei de Anistia] com as posteriores decisões da CIDH, os juízes ficam inseguros e fica esse conjunto de decisões díspares”, afirma.
Para ele, o STF tem postergado o cumprimento de uma obrigação constitucional e internacional brasileira. “O Brasil assinou uma convenção dizendo que se compromete a cumprir na integralidade todas as decisões da Corte que sejam pronunciadas contra ele. E não cumpre. Hoje a gente tem uma situação de descumprimento de uma obrigação internacional por parte do judiciário brasileiro”.
Edição: Luiza Mançano