Ridicularização do debate esvazia a possibilidade do conflito de ideias
Por Martonio Mont'Alverne Barreto Lima*
Economistas como Wolfgang Streeck oferecem a melhor contribuição para o desafio que se tem atualmente sobre a convivência entre democracia e mercado. Com uma recuperação histórica sobre o fortalecimento do Estado social e da democracia, após 1945 até os anos 1970, Streeck explica os nexos de significados econômico e político da desregulamentação. O argumento para a mudança da orientação econômica e política seria o “peso” do Estado social. O resultado não poderia ser outro: aumento da desigualdade, comprometimento da qualidade da democracia instalada, diminuição dos salários de grande parte da população e aumento da concentração de renda. Todo este quadro vem acompanhado das conhecidíssimas consequências: aumento da miséria e da criminalidade.
Como já foi dito, a pobreza jamais será a escola da razão. No ambiente degradado econômica e politicamente, a primeira vítima é a recusa da formação cultural – Bildung - com a afirmação de superioridade das superstições religiosas, levadas a cabo com mais sofisticação pela teologia.
Aqui, a primeira das vítimas é a cultura de uma sociedade, numa perspectiva mais ampla. Pela perda das noções culturais não se quer dizer somente o eventual diletantismo de desfrutar-se de um bom cinema, dança, música, leitura ou teatro. O sentido cultural aqui se refere ao conjunto de elementos do conhecimento que uma sociedade acumula, para entender a si mesma e ao mundo. Neste amplo rol de elementos objetivos, estão a história e a política, como dados concretos da vida social a fornecerem explicação racional para os problemas que as mesmas sociedades terão de enfrentar.
Perda da autonomia
O abandono deste campo de conhecimento pela reles convicção pessoal, instruída apenas pela informação midiática e por redes sociais, liquida qualquer possibilidade de uma compreensão autônoma, conduzindo a sociedade a acreditar que somente forças sobrenaturais poderão auxiliar na superação dos desafios que cada sociedade tem.
Este fenômeno explica também porque a educação é a primeira das vítimas do redimensionamento financeiro, com o corte de recursos, ou a alternativa das mais perversas: diminui-se seu orçamento, para legitimar o discurso de que escolas, universidades, instituições e incentivo à pesquisa não têm como ser mantido pelo governo.
Esta estratégia é perversa – por isso mesmo realizável pela mente humana – por diversos motivos. Primeiro, porque retira a possibilidade de acesso a quem não tem como pagar por sua formação cultural. Segundo, porque afasta a sociedade das ferramentas do estudo e da investigação científica, facilitando a crença no sobrenatural como alternativa concreta de mudanças.
As medidas do governo Bolsonaro não são novidades, foram anunciadas pelo presidente e por seus arautos durante todo o pleito eleitoral. É possível comentar rapidamente que não há novidade. Bolsonaro e sua equipe entendem bem sua função. Sabem que os chistes, a que sempre recorreram para desacreditar direitos humanos e definir prestações sociais, encontram respaldo numa agenda econômica que já corre o mundo há pelo menos 20 anos. Dizer com deboche que programas inclusivos são fonte de preguiça é simplesmente ignorar o papel decisivo que tiveram tais políticas econômicas, segundo Streeck, na tarefa de acabar com a miséria e capacitar a população para atividades laborais em igualdade de condições.
A assimilação deste discurso do novo governo impressiona porque remete ao risco mais profundo que ele traz: à própria democracia. Quando o debate de qualquer tema é ridicularizado por espertas paródias, elaboradas pelos que governam; ou quando é remetido ao universo de questão judicial ou de polícia, esvazia-se a possibilidade do conflito de ideias, caracterizador de qualquer democracia. Já vivemos isto.
Filme repetido
O antecessor imediato de Getúlio Vargas, presidente Washington Luiz, ficou famoso por dizer que “no Brasil, a questão social é questão de polícia”. Igualmente ao que se diz hoje: a criminalidade não guardaria nenhuma relação com nossa iniquidade social, com o drama de jovens de periferias urbanas entregues à sorte de traficantes por falta de opção. Assim, polícia seria a solução.
Àquela altura, tivemos Vargas que sucedeu Washington Luís, e, pela primeira vez no País, a questão social começou a abandonar a pauta policial para virar agenda de governo. Eis a dívida dos brasileiros com o populismo, que, por aqui na América Latina, possui significado absolutamente distinto da experiência europeia.
Hoje, nossa democracia está presa, vitimada que foi também pelo Poder Judiciário, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que deveria ser seu guardião. Não há, decididamente, como entregar a democracia ao Judiciário. O caso brasileiro é só mais um entre tantos que a história registra. O desafio está na compreensão, como um todo, do que acontece em nosso País, com um governo que nada traz de novo.
* Martonio Mont'Alverne Barreto Lima é professor titular da Universidade de Fortaleza, procurador do Município de Fortaleza e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Edição: Cecília Figueiredo