Nunca coube tão bem a velha definição: 'se cobrir é circo, se cercar é hospício'
Não existe maior espanto no Brasil de 2019 do que a desaparição do espanto. Nada espanta mais. O cotidiano do poder na Pátria Amada tornou-se tão assombroso que tudo é possível, tudo é crível. Todo dia o Absurdo diz “Oi” para a gente, e a gente responde como se não fosse uma aberração, mas nosso vizinho de porta.
Bastaram duas semanas de regência militar-evangélica-neoliberal para se desatarem os últimos fiapos das amarras que ainda nos prendiam ao real. Os eventos deste janeiro insano, as vacilações, as asneiras, os tropeções, as cabeçadas, a exaltação da estupidez nos arremessaram no meio de algo similar a uma comédia dos "Três Patetas", com a desvantagem óbvia de que os patetas aqui não são apenas três. Mesmo assim, não ficamos estarrecidos como a situação nos impunha. Parece mesmo que o espanto foi sequestrado.
Tornamo-nos invulneráveis ao sentimento de estranheza, a reação de que algo está fora do lugar. O maior disparate ganha foros de banalidade. Aquele rinoceronte trotando na rua principal não nos surpreende. Parece que sempre esteve ali. Ele e os demais rinocerontes que pastam calmamente nos jardins do Planalto, que devoram o carpete verde de Dias Toffoli, que defecam no gabinete de Rodrigo Maia.
Não fosse o espanto uma criatura exilada da vida política nacional, a Nação se levantaria indignada ante um governo que, em 15 dias, anunciou 12 medidas e 12 recuos. É como se fosse um carro só com duas marchas: primeira e ré, permanentemente alternadas. Não sai do lugar. Não existe espanto diante de um presidente que anuncia que assinou um decreto -- de aumento do IOF – que não assinou...”Ele não assinou nada”, corrigiu, rebatendo seu chefe, um funcionário do segundo escalão. Espanto? Quase nenhum. Vida que segue.
Na mesma toada aconteceram os anúncios e desmentidos da instalação de uma base militar dos Estados Unidos no País, a transferência da Embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém e tantos outros. Tudo sem tocar nas bizarrices de um chanceler achado no baixo clero do Itamaraty, um ministro da Educação ansioso por enxugar o sangue que encharca os 21 anos de ditadura, outro que acha um liquidificador tão letal quanto um trabuco, uma ministra que encontrou Jesus trepado numa goiabeira. Nunca houve algo igual. Nunca coube tão bem a velha definição: “Se cobrir é circo, se cercar é hospício”.
Mas nada disso afeta nossa vacina anti-espanto. Não espantam os assassinatos e as chacinas. As agressões contra indígenas e quilombolas, os ataques aos sem terra, o avanço da devastação da Amazônia, a misoginia, a homofobia, o racismo, a predação dos direitos trabalhistas e previdenciários. Tudo é trivial. Ou assim é vendido por uma mídia empresarial, que moveu guerra sem trégua contra os governos populares. Compromissada com a produção de um impeachment sem crime de responsabilidade, entregou a Nação a uma corja que se autodestruiu na mais impopular gestão desde a Proclamação da República. Com poucas exceções, está ajudando, novamente, a construir essa imunidade ao espanto...
Para seu infortúnio, além das fronteiras o Brasil é mais espantoso do que jamais foi. A percepção da imprensa internacional sobre o cenário é oposta à da nativa. Degredado, o espanto lá fora se expressa com frequência e intensidade. Em outras palavras, ninguém entende nossa apatia diante de palavras e gestos que nos esbofeteiam dia sim outro também.
O maior dos espantos, porém, continua sendo a indolência com que o Brasil e os brasileiros toleram o destino imposto a um homem de 73 anos, sentenciado sem provas cabais, vítima da justiça do inimigo, impedido de concorrer à eleição que venceria, fadado a definhar numa cela de Curitiba. Não por casualidade é o maior brasileiro dos últimos 50 anos. Haja o que houver, a fraqueza, a tolerância, a passividade, a ausência de espanto diante de tamanho drama irá humilhar a nação por muitos e muitos anos. Algum dia nos espantaremos com a nossa própria iniquidade.
* Ayrton Centeno é jornalista. Trabalhou, entre outros veículos, no Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra e autor de "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017), entre outros livros.
Edição: Cecília Figueiredo