Terminei esse texto alguns dias depois da reunião do Copam, em 11 de dezembro de 2018. Foi a forma que tive para expressar os sentimentos causados por aquele show de horrores. Não ia publicar, mas acho que agora se faz necessário.
Belo Horizonte, 11/12/2018
Reunião Copam
Escrevo essas linhas para compartilhar o turbilhão de sentimentos que tive durante a reunião do Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) de Minas Gerais, com relação à Licença de Operação da Etapa 3 para o projeto Minas-Rio, da empresa Anglo American Minério de Ferro Brasil S.A., em Conceição do Mato Dentro e Alvorada de Minas/MG, além de projetos de ampliação e continuidade até 2032 da minas da Jangada (Minerações Brasileiras Reunidas S.A.) e do Córrego do Feijão (Vale S.A.).
Diante da minha pequena trajetória no ativismo contra a mineração predatória em Minas Gerais, não me assustei ao ver algumas trabalhadoras e trabalhadores da Vale, uniformizados, presentes na reunião, certamente em seus horários de trabalho, muito provavelmente presentes para uma atividade laboral da empresa que os contrata. Isso, as empresas de mineração levam seus funcionários para as reuniões e audiências públicas relacionadas aos licenciamentos. O clima de disputa e raiva se acirra em um contexto assim.
A reunião foi majoritariamente pautada pelos argumentos em defesa da ampliação dos empreendimentos destrutivos, tendo, por muitas horas, apenas uma ativista, a Teca, como representante dos argumentos em defesa da vida e dos territórios. A plateia parecia bastante equilibrada com relação ao número de representantes dos dois principais interesses em jogo: a ampliação dos projetos destrutivos de mineração, com o imperativo do argumento econômico e a preservação do que restou das águas e serras dos territórios já gravemente explorados pela mineração.
Quando os questionamentos da Teca, representando o Fonasc e as populações atingidas, foram apresentados pela retirada de pauta da ampliação dos projetos de mineração, seguiu-se um show de horrores. Uma torcida se demarcou, comunidades atingidas e ambientalistas de um lado e alguns trabalhadores da empresa e dos órgãos governamentais, ligados aos processos de licenciamento ambiental, de outro. As comunidades atingidas e ambientalistas nos manifestamos algumas vezes, aos gritos, diante de informações equivocadas que eram apresentadas na reunião e da absoluta dominação do discurso por parte dos interessados pela autorização dos empreendimentos. A emoção, ansiedade, angústia nos olhos e expressões dos representantes das comunidades era transparente. Gritos desesperados eram emitidos, de tempos em tempos, diante disso, ocorreram ameaças por parte de alguns representantes da reunião, que soaram como opressão e intimidação. A polícia chegou ao recinto. Uma batalha de argumentações e contra argumentações se empreendeu contra a Teca, a única representante da sanidade do discurso naquele show de horrores.
Digo sanidade de discurso, porque algumas falas emocionadas como a de um trabalhador da Semad foram no sentido de que todos ali, desfavoráveis à ampliação dos empreendimentos, seriam levianos ao questionar os laudos e relatórios “ambientais”. Citou com ênfase a importância do seu trabalho e de sua equipe nos processos de licenciamentos ambientais e a precariedade de trabalho dos servidores públicos estaduais, como se estivessem sendo penalizados por fazer um belo trabalho de “apoio ao desenvolvimento” do estado. Uma fala completamente auto centrada e desconectada do interesse comum, que ele, como servidor público, deveria representar. Falou como se fossemos insanos por lutar pela preservação das serras e águas de Minas, pela segurança hídrica e alimentar de milhares de pessoas em nosso estado. Os que estavam defendendo a preservação do pouco que restou das nossas serras e águas, depois de séculos de insaciável e contínua extração minerária e exploração, foram colocados como entrave ao desenvolvimento, mais uma vez. O mesmo modo de agir das empresas e governos, desde que os movimentos ambientalistas e de resistência socioambiental começaram a se estruturar e atuar, no mundo, a partir da década de 70. Desde esse período, uma estratégia bem comum tem sido ridicularizar ambientalistas, povos tradicionais, pesquisadores contra hegemônicos e qualquer pessoa que faça a discussão da importância da preservação ambiental, com os argumentos de um ciência à serviço da indústria e do desenvolvimentismo predatório. A “ciência normal” e seus argumentos técnicos tem, historicamente, dado o respaldo à atuação dessas atividades no mundo.
Gente chique e bem vestida, alguns com ternos e roupas elegantes, saltos altos eram os representantes de um modelo de desenvolvimento que alimenta esse sistema de produção cego e alienado, que só consegue ver o lucro e o poder. Muita agressão simbólica e verbal se deu nesse contexto.
E o que eu conseguia enxergar era somente um grupo de pessoas defendendo seus salários e empregos, por meio da defesa de projetos econômicos de mineração. Olhares de raiva, disputa se cruzavam durante e depois de cada fala. Ao lado dessas pessoas, representantes das comunidades atingidas, sendo intimidados ao silêncio, inúmeras vezes, mesmo diante de muitas inverdades sobre os impactos e a sustentabilidade socioambiental ligados aos empreendimentos de mineração em pauta.
Não consegui ver apenas maldade naquelas pessoas, era mais como uma cegueira doentia. Entendem que suas vidas pessoais são mais importantes do que uma grande coletividade em risco, não percebem que as destruições locais, somadas, tem impactos globais. No final, somos todos atingidos pela destruição que estamos causando em nosso meio de vida e sobrevivência, nosso planeta, nossa casa comum. As atitudes pareciam justificar apenas a manutenção de empregos e salários de alguns, poucos, diante dos milhares de atingidos pela mineração, aqui e no mundo. Os gritos das comunidades atingidas cortavam como faca.
Às 12h30 ainda não havia sido aberta a fala para os inscritos, como não consegui falar o que tanto me angustiou naquele cenário trágico, trago para esse texto os comentários que gostaria de ter feito lá e saí com eles entalados na garganta, chorando.
Estamos na segunda semana da Conferência das Partes das nações Unidas, a COP 24. Essa conferência é o espaço de discussão e compromissos dos países membros, com relação à redução de gases de efeito estufa na atmosfera. Essa discussão é importante para garantir tomadas de decisão governamentais, em todo o mundo, que não nos coloquem em maior risco climático do que já estamos vivendo. Vivemos em uma nova época geológica, o Antropoceno, onde somos capazes de alterar sistemas globais, a partir das alterações ambientais causadas pelos dos modos de produção industriais, ao longo de séculos, com muita emissão de gases de efeito estufa e destruição ecossistêmica. Vivemos também a sexta extinção em massa do planeta Terra, de acordo com bastante evidência científica…
Então, como é que nós, que insistimos na defesa da vida e de modelos de desenvolvimento local e comunitário, o cuidado dos bens comuns para a manutenção de toda a vida na terra, somos os equivocados, radicais, extremistas, que impedem o “desenvolvimento”?
A promoção desse “desenvolvimento” pautado pela atuação de grandes empresas de capital internacional, poluidoras, violadoras de direitos e destruidoras, às custas da nossa saúde e qualidade de vida não é justa, nem ética. Insano, irracional, irrealista é quem defende esse modelo de servidão minerária, numa lógica de crescimento econômico infinito! Sim, porque o limite está posto, é a garantia de água para milhares de pessoas, ou milhares de dólares de lucro para empresas mineradoras, com poucos e muitas vezes precários empregos diretos destinados às pessoas contratadas para esse tipo de atividade.
Como as reservas minerais são finitas e não podemos permitir que extraiam tudo, com toda a destruição dos territórios que isso significaria, estratégias de transição econômica dos municípios são urgentes.
Grandes empresas extrativistas e de produção deveriam agora tratar de reciclar todo metal já extraído e disponível no planeta, além de todos os outros resíduos que têm causado graves contaminações de solos e corpos hídricos, em aterros sanitários, lixões, ou mesmo nos oceanos. O argumento de que reciclar não é economicamente viável só se sustenta porque as empresas extrativistas não pagam por toda vida destruída, pela degradação de biomas, rios cachoeiras, habitats, degradação da saúde humana e ecossistêmica, dos territórios e seus povos, suas histórias e culturas… Não pagam pelo adoecimento das comunidades atingidas direta ou indiretamente pela escassez hídrica, contaminação de corpos d’água, veiculação de doenças relacionados à água, diante do imenso desequilíbrio ambiental e ecossistêmico que promovem, do adoecimento mental e da alma. A sociedade paga, o SUS paga, com a perda da nossa qualidade de vida. Empresas, governos, pessoas corruptas ficam com os lucros exorbitantes da infinita destruição que causam, das riquezas que levam e dos bens comuns que destroem para sempre. Para nós restam empregos temporários, inviabilidade de vida nos territórios, adoecimento, pobreza e falta de água.
Além disso, grande parte dos metais extraídos dos nossos territórios, com muita destruição, são destinados à exportação. E uma atividade que consome muito minério é indústria bélica. Promovem a destruição aqui, pra gerar mais destruição em outros lugares do mundo, por meio das armas de guerra.
Criam barragens de rejeito inseguras, como se fossem durar para sempre, mas são construídas sem responsabilidade socioambiental, efetiva fiscalização e verdadeiro investimento em medidas de segurança.
Governos e empresas não podem garantir a segurança dessas barragens em um contexto de intensificação da frequência e intensidade de fenômenos climáticos extremos. Não podem garantir a segurança hídrica de milhares de pessoas, em um contexto de redução da precipitação e aumento de temperaturas para todo o sudeste brasileiro, de acordo com as projeções climáticas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Será que vão negar o aquecimento global? Essa seria uma estratégia muito lógica para representantes do setor extrativista, porém não é mais viável, já que estamos vivenciando o colapso do sistema climático do planeta. Não podem negar as imagens da Nasa sobre o planeta terra em chamas, em várias regiões do globo. Não podem negar os recordes históricos de intensidade e frequência de diversos eventos climáticos extremos como tufões, ciclones, tempestades e secas, nos últimos anos.
Ao fim e ao cabo, fui informada de que aprovaram tudo na reunião, nenhuma argumentação é suficiente para barrar a ganância e a insanidade humanas.
Perde a Mãe Terra, perdemos nós… Mas não estamos vencidos, outras estratégias são possíveis, como geração de renda para as comunidades locais, cuidando dos territórios e seus povos com a agricultura agroecológica, agrofloresta, que promove o aumento da cobertura vegetal e absorção de CO2, o turismo sustentável, a arte, o artesanato, a cultura.
Não somos escravos da mineração, podemos superar essa atividade medieval com a reciclagem, novas tecnologias, novos materiais e o fim da exportação de minério como commodities, além de investimentos reais em sustentabilidade. Água vale mais que minério!
* Ana Flavia Quintão, conselheira do Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas (Fonasc)
Edição: Luiz Felipe Albuquerque