República Democrática

Artigo | O que está em jogo no Congo: eleições, mineração e geopolítica

Defensor dos direitos humanos congolês explica os interesses políticos e econômicos por trás da eleição de Tshisekedi

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Félix Tshisekedi acompanhado da mulher, de familiares e apoiadores pouco depois de ser anunciado o resultado provisório da eleição congolesa
Félix Tshisekedi acompanhado da mulher, de familiares e apoiadores pouco depois de ser anunciado o resultado provisório da eleição congolesa - Foto: Caroline Thirion/AFP

No domingo, 19 de janeiro de 2019, o Tribunal Constitucional da República Democrática do Congo (RDC) confirmou a vitória de Félix Tshisekedi, filho de uma figura histórica da oposição no país, Étienne Tshisekedi, que faleceu em 2017. A corte rejeitou as alegações de fraude feitas pelo candidato derrotado Martin Fayulu e ignorou os pedidos da União Africana para adiar a confirmação de Tshisekedi por “sérias dúvidas com relação à conformidade dos resultados provisórios” divulgados pela comprometida Comissão Eleitoral Nacional Independente (Ceni).

Desde as eleições, realizadas em 30 de dezembro, e o anúncio, em janeiro, de que Félix Tshisekedi foi o vencedor da corrida presidencial, uma grande agitação tomou conta de atores regionais, continentais e internacionais envolvidos com o Congo.

O Conselho de Segurança da ONU realizou uma série de reuniões de emergência sobre as eleições no país. África do Sul, França, Bélgica, Zâmbia, Rússia, China, Estados Unidos e outros países se uniram ao debate sobre o resultado das eleições. Cada um com seus próprios interesses, seja em relação ao setor energético ou minerador por parte da África do Sul, ao urânio pela França, ao treinamento de soldados congoleses pela Rússia ou aos interesses na mineração por parte da China. Os EUA chegaram inclusive a destacar 80 tropas com aeronaves militares para o vizinho Gabão, prontas para intervir no Congo se necessário, supostamente para proteger a população, as estruturas e o avanço da “segurança nacional e dos interesses políticos estrangeiros”.

Analistas de risco de Toronto, Nova York e Londres acompanharam a situação de perto. A República Democrática do Congo abriga uma das maiores reservas de cobalto e é o maior produtor global do metal, vital para a florescente indústria de carros elétricos. Segundo o jornal Financial Times, o ex-dono da empresa de segurança Blackwater, Erik Prince, está lançando um financiamento para arrecadar US$ 500 milhões para investir em cobalto no país. A Reuters destacou que “há muita coisa em jogo para as empresas de mineração”. A respeito das eleições e do possível impacto do pleito nos negócios da nação africana, cinco executivos do setor ouvidos pela reportagem afirmaram não esperar grandes mudanças, independentemente de quem assuma a presidência.

Toda a classe política, incluindo [Joseph] Kabila [atual presidente congolês, no poder há 18 anos] e sua coalizão, foi cooptada pelo capital financeiro internacional. Embora Kabila dê um apoio de fachada ao anti-imperialismo, não existe anticapitalismo nem anti-imperialismo entre os principais líderes políticos do Congo. O próprio Kabila está profundamente envolvido com o bilionário israelense Dan Gertler, que lucrou bilhões com a exploração de minérios e petróleo no Congo. Gertler atuou como intermediário para grandes fundos de cobertura (hedge funds) de Wall Street, como Och-Ziff, que se indispôs com o Departamento de Justiça dos EUA por oferecer US$ 100 milhões para o executivo subornar líderes africanos. Além disso, o bilionário é o elo principal entre Kabila e a gigante da mineração Glencore, que consegue concessões a preço de banana graças ao relacionamento com Gertler na RDC.

Em meio à corrida pelas riquezas do Congo e à intriga geopolítica, está a história não contada de como a classe trabalhadora e oprimida do país obrigou Joseph Kabila, para começo de conversa, a realizar eleições e a não se candidatar a um terceiro mandato. Por fim, o povo de forma massiva contra o candidato escolhido a dedo pelo governante [o ex-ministro do Interior Emmanuel Shadary] que o atual mandatário não teve escolha a não ser chegar a um acordo com Félix Tshisekedi, opositor maleável que poderia ser comprado. Kabila não conseguiria alcançar o mesmo tratamento com a outra grande figura da oposição, Martin Fayulu, porque este é apoiado por dois inimigos fervorosos do atual presidente, Jean-Pierre Bemba e Moïse Katumbi.

As massas congolesas, em sua maioria, não têm formação política e compreensão sobre as intrigas geopolíticas que acontecem em torno das eleições. No entanto, elas têm clareza sobre a necessidade de mudar suas condições materiais e viram, nas eleições de dezembro, uma oportunidade para acabar com os últimos 18 anos de sofrimento, pobreza, insegurança e saque enfrentados sob o regime de Kabila, votando por mudança. A principal preocupação da população era ter seus votos contabilizados e suas vozes, respeitadas. Infelizmente, com um acordo e uma manobra, a mudança eleita tem pouca chance de se materializar. Uma parte do pacto para dar a presidência a Tshisekedi incluía a garantia de que a coalizão de Kabila abocanharia uma supermaioria no poderoso parlamento e 22 das 26 assembleias provinciais, perpetuando essencialmente o regime do atual mandatário, que tem sido a desgraça da existência do povo congolês.

Então, o que se pode fazer? É vital que o povo continue a resistir apesar desse retrocesso. É preciso que os aliados da classe trabalhadora de todo o mundo expressem uma posição de princípios, exigindo que se respeite o voto e a voz do povo congolês. A população votou mais contra o regime de Kabila do que por algum candidato específico. A solidariedade pan-africana é crucial, principalmente na construção da narrativa sobre o que realmente está em jogo no Congo: um povo confrontando sua elite local que foi cooptada pelo capital financeiro internacional.

A coalizão de esquerda da juventude congolesa deve acelerar e aprofundar as campanhas de formação política para oferecer uma base ideológica e uma vazão política progressista para a indignação e a frustração que vêm sendo expressadas pelas massas oprimidas.

*Kambale Musavuli nasceu na República Democrática do Congo e é empreendedor social e defensor internacional dos direitos humanos. Atua como porta-voz nacional do Friends of the Congo, grupo que busca divulgar a situação do país para o mundo e oferecer apoio a instituições locais.

Edição: Vivian Fernandes | Tradução: Aline Scátola